Por Odemir Silva
O Senhor Jesus Cristo, pela sua morte
expiatória, comprou a salvação para os homens. Como Deus a aplica e como é ela
recebida pelos homens para que se torne uma realidade experimental? As verdades
relaciona¬das com a aplicação da salvação agrupam-se sob três títulos:
Justificação, Regeneração e Santificação. As verdades relacionadas com a
aceitação da salvação, por parte dos homens, agrupam-se sob os seguintes
títulos: Arrependimento, Fé e Obediência.
I.
A NATUREZA DA SALVAÇÃO
O assunto desta seção será: Que é que
constitui a salvação, ou "estado de graça"?
1. Três aspectos da salvação.
Há três aspectos da salvação, e cada
qual se caracteriza por uma palavra que define ou ilustra cada aspecto:
(a)
Justificação é um termo forense que nos faz lembrar um tribunal. O homem,
culpado e condenado, perante Deus, é absolvido e declarado justo — isto é,
justificado.
(b)
Regeneração (a experiência subjetiva) e Adoção (o privilégio objetivo) sugerem
uma cena familiar. A alma, morta em transgressões e ofensas, precisa duma nova
vida, sendo esta concedida por um ato divino de regeneração. A pessoa, por
conseguinte, torna-se herdeira de Deus e membro de sua família.
(c)
A palavra santificação sugere uma cena do templo, pois essa palavra
relaciona-se com o culto a Deus. Harmonizadas suas relações com a lei de Deus e
tendo recebido uma nova vida, a pessoa, dessa hora em diante, dedica-se ao
serviço de Deus. Comprado por elevado preço, já não é dono de si; não mais se
afasta do templo (figurativamente falando), mas serve a Deus de dia e de noite.
(Luc. 2:37.) Tal pessoa é santificada e por sua própria vontade entrega-se a
Deus.
O homem salvo, portanto, é aquele cuja
vida foi harmonizada com Deus, foi adotado na família divina, e agora dedica-se
a servi-lo. Em outras palavras, sua experiência da salvação, ou seu estado de
graça, consiste em justificação, regeneração (e adoção), e santificação. Sendo
justificado, ele pertence aos justos; sendo regenerado, ele é filho de Deus; sendo
santificado, ele é "santo" (literalmente uma pessoa santa).
São essas bênçãos simultâneas ou
consecutivas? Existe, de fato, uma ordem lógica: o pecador harmoniza-se,
primeiramente, perante a lei de Deus; sua vida é desordenada; precisa ser
transformada. Ele vivia para o pecado e para o mundo e, portanto, precisa
separar-se para uma nova vida, para servir a Deus. Ao mesmo tempo as três
experiências são simultâneas no sentido de que, na prática, não se separam. Nós
as separamos para poder estudá-las. As três constituem a plena salvação. À
mudança exterior, ou legal, chamada justificação, segue-se a mudança subjetiva
chamada regeneração, e esta , por sua vez, é seguida por dedicação ao serviço
de Deus. Não concordamos em que a pessoa verdadeiramente justificada não seja
regenerada; nem admitimos que a pessoa verdadeiramente regenerada não seja
santificada (embora seja possível, na prática, uma pessoa salva, às vezes,
violar a sua consagração). Não pode haver plena salvação \ sem essas três
experiências, como não pode haver um triângulo sem três lados. Representam elas
o tríplice fundamento sobre o qual se baseia subsequente vida cristã. Começando
com esses três princípios, progride a vida cristã em direção à perfeição.
Essa tríplice distinção regula a
linguagem do Novo Testamento em seus mínimos detalhes. Ilustremos assim:
(a)
Em relação à justificação: Deus é o Juiz, e Cristo é o Advogado; o pecado é a
transgressão da lei; a expiação é a satisfação dessa lei; o arrependimento é
convicção; aceitação traz perdão ou remissão dos pecados; o Espírito testifica
do perdão; a vida cristã é obediência e sua perfeição é o cumprimento da lei da
justiça.
(b)
A salvação é também uma nova vida em Cristo. Em relação a essa nova vida, Deus
é o Pai (Aquele que gera), Cristo é o Irmão mais velho e a vida; o pecado é
obstinação, é a escolha da nossa própria vontade em lugar da vontade do Chefe
da família; expiação é reconciliação; aceitação é adoção; renovação de vida é
regeneração, é ser nascido de novo; a vida cristã significa a crucificação e
mortificação da velha natureza, a qual se opõe ao aparecimento da nova
natureza, e a perfeição dessa nova vida é o reflexo perfeito da imagem de
Cristo, o unigênito Filho de Deus.
(c)
A vida cristã é a vida dedicada ao culto e ao serviço de Deus, isto é, a vida
santificada. Em relação a essa Vida santificada, Deus é o Santo; Cristo é o
sumo sacerdote; o pecado é a impureza; o arrependimento é a consciência dessa
impureza; a expiação é o sacrifício expiatório ou substitutivo; a vida cristã é
a dedicação sobre o altar (Rom. 12:1); e a perfeição desse aspecto é a inteira
separação do pecado; separação para Deus.
E essas três bênçãos da graça foram
providas pela morte expiatória de Cristo, e as virtudes dessa morte são
concedidas ao homem pelo Espírito Santo. Quanto à satisfação das reivindicações
da lei, a expiação proveu o perdão e a justiça para o homem. Abolindo a
barreira existente entre Deus e o homem, ela possibilitou a nossa vida
regenerada. Como sacrifício pela purificação do pecado, seus benefícios são
santificação e pureza.
Notemos que essas três bênçãos fluem da
nossa união com Cristo. O crente é um com Cristo, em virtude de sua morte
expiatória e em virtude do seu Espírito vivificante. Tornamo-nos justiça de
Deus nele, (2 Cor. 5:21); por ele temos perdão dos pecados (Efés. 1:7); nele
somos novas criaturas, nascidos de novo, com nova vida (2 Cor. 5:17); nele
somos santificados (1Cor. 1:2), e ele é feito para nós santificação (1Cor.
1:30).
Ele é "autor da salvação
eterna".
2. Salvação - externa e interna.
A Salvação é tanto objetiva (externa)
como subjetiva (interna).
(a)
A justiça, em primeiro lugar, é mudança de posição, mas é acompanhada por
mudança de condições. A justiça tanto é imputada com também conferida.
(b)
A adoção refere-se a conferir o privilégio da divina filiação; a regeneração
trata da vida interna que corresponde à nossa chamada e que nos faz
"participantes da natureza divina".
(c)
A santificação é tanto externa como interna. De modo externo é separação do pecado
e dedicação a Deus; de modo interno é purificação do pecado.
O aspecto externo da graça é provido
pela obra expiatória de Cristo; o aspecto interno é a operação do Espírito
Santo.
3. Condições da salvação.
Que significa a expressão condições da
salvação? Significa o que Deus exige do homem a quem ele aceita por causa de
Cristo e a quem dispensa as bênçãos do Evangelho da graça.
As Escrituras apresentam o
arrependimento e a fé como condições da salvação; o batismo nas águas é
mencionado como símbolo exterior da fé interior do convertido. (Mar. 16:16;
Atos 22: 16; 16:31; 2:38; 3:19.)
Abandonar o pecado e buscar a Deus são
as condições e os preparativos para a salvação. Estritamente falando, não há
mérito nem no arrependimento nem na fé; pois tudo quanto é necessário para a
salvação já foi providenciado a favor do penitente. Pelo arrependimento o
penitente remove os obstáculos à recepção do dom; pela fé ele aceita o dom.
Mas, embora sejam obrigatórios o arrependimento e a fé, sendo mandamentos, é
implícita a influência ajudadora do Espírito Santo. (Notem a expressão:
"Deu Deus o arrependimento" Atos 11:18.) A blasfêmia contra o
Espírito Santo afasta o único que pode comover o coração e levá-lo à contrição.
Por conseguinte, para tal pecado não há perdão.
Qual é a diferença entre o
arrependimento e a fé? A fé é o instrumento pelo qual recebemos a salvação,
fato que não se dá com o arrependimento. O arrependimento ocupa-se com o pecado
e o remorso, enquanto a fé ocupa-se com a misericórdia de Deus.
Pode haver fé sem arrependimento? Não.
Só o penitente sente a necessidade do Salvador e deseja a salvação de sua alma.
Pode haver arrependimento verdadeiro sem
fé? Ninguém poderá arrepender-se no sentido bíblico sem fé na Palavra de Deus,
sem acreditar em suas ameaças do juízo e em suas promessas de salvação.
São a fé e o arrependimento apenas
medidas preparatórias à salvação? Ambos acompanham o crente durante sua vida
cristã; o arrependimento torna-se em zelo pela purificação da alma; e a fé
opera pelo amor e continua a receber as coisas de Deus.
(a) Arrependimento.
Alguém definiu o arrependimento das seguintes maneiras: "A verdadeira
tristeza sobre o pecado, incluindo um esforço sincero para abandoná-lo";
"tristeza piedosa pelo pecado"; "convicção da culpa produzida
pelo Espírito Santo ao aplicar a lei divina ao coração"; ou, nas palavras
de menino: "Sentir tristeza a ponto de deixar o pecado."
Ha três elementos que constituem o
arrependimento segundo as Escrituras: intelectual, emocional e prático. Podemos
ilustrá-los da seguinte maneira: (1) O viajante que descobre estar viajando em
trem errado. Esse conhecimento corresponde ao elemento intelectual pelo qual a
pessoa compreende, mediante a pregação da Palavra, que não está em harmonia com
Deus. (2) O viajante fica perturbado com a descoberta. Talvez alimente certos
receios. Isso ilustra o lado emocional do arrependimento, que é uma
auto-acusação e tristeza sincera por ter ofendido a Deus. (2 Cor. 7:10) (3) Na
primeira oportunidade o viajante deixa esse trem e embarca no trem certo. Isso
ilustra o lado prático do arrependimento, que significa em "meia-volta.. .
volver!" e marchar em direção a Deus. Há uma palavra grega traduzida
"arrependimento", que significa literalmente "mudar de idéia ou de
propósito". O pecador arrependido se propõe mudar de vida e voltar-se para
Deus; o resultado prático é que ele produz frutos dignos do arrependimento.
(Mat. 3:8.)
O arrependimento honra a lei como a fé
honra o evangelho. Como, pois, o arrependimento honra a lei? Contristado, o homem
lamenta ter-se afastado do santo mandamento, como também lamenta sua impureza
pessoal que, à luz dessa lei, ele compreende. Confessando — ele admite a
justiça da sentença divina. Na correção de sua vida ele abandona o pecado e faz
a reparação possível e necessária, de acordo com as circunstâncias.
De que maneira o Espírito Santo ajuda a
pessoa a arrepender-se? Ele a ajuda aplicando a Palavra de Deus à consciência,
comovendo o coração e fortalecendo o desejo de abandonar o pecado.
(b) Fé.
Fé, no sentido bíblico, significa crer e confiar. É o assentimento do intelecto
com o consentimento da vontade. Quanto ao intelecto, consiste na crença de
certas verdades reveladas concernentes a Deus e a Cristo; quanto à vontade,
consiste na aceitação dessas verdades como princípios diretrizes da vida. A fé
intelectual não é o suficiente (Tia. 2:19; Atos 8:13, 21) para adquirir a
salvação. É possível dar seu assentimento intelectual ao Evangelho sem,
contudo, entregar-se a Cristo. A fé oriunda do coração é o essencial (Rom.
10:9). Fé intelectual significa reconhecer como verídicos os fatos do
evangelho; fé provinda do coração significa a pronta dedicação da própria vida
as obrigações implícitas nesses fatos. Fé, no sentido de confiança, implica
também o elemento emocional. Por conseguinte, a fé que salva representa um ato
da inteira personalidade, que envolve o intelecto, as emoções e a vontade.
O significado da fé determina-se pela
maneira como se emprega a palavra no original grego. Fé, às vezes, significa
não somente crer em um corpo de doutrinas, mas, sim, crer em tudo quanto é
verdade, como, por exemplo nas seguintes expressões: "Anuncia agora a fé
que antes destruía (Gál. l:2d); apostatarão alguns da fé" (1 Tim. 4:1);
"a batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos (Jud. 8). Essa fé é
denominada, às vezes, "fé objetiva" ou externa. O ato de crer nessas
verdades é conhecido como fé subjetiva.
Seguida por certas preposições gregas a
palavra "crer" exprime a ideia de repousar ou apoiar-se sobre um
firme fundamento; é o sentido da palavra crer que se lê no Evangelho de João
3:16. Seguida por outra preposição, a palavra significa a confiança que faz
unir a pessoa ao objeto de sua fé. Portanto, te e o elo de conexão entre a alma
e Cristo.
A fé é atividade humana ou divina? O
fato de que ao homem e ordenado crer implica capacidade e obrigação de crer.
Todos os homens tem a capacidade de depositar sua confiança em alguém e em
alguma coisa. Por exemplo: um deposita sua fé em riquezas, outro no homem,
outro em amigos, etc. Quando a crença e depositada na palavra de Deus, e a
confiança está em Deus e em Cristo, isso constitui fé que salva. Contudo,
reconhecemos a graça do Espírito Santo, que ajuda, em cooperação com a Palavra,
na produção dessa fé (Vide João 6:44; Rom. 10:17; Gál. 5:22; Heb. 12:2.)
Que é então, a fé que salva? Eis algumas
definições: "Fé em Cristo e graça salvadora pela qual o recebemos e nele
confiamos inteiramente para receber a salvação conforme nos é oferecida no
evangelho." E o "ato exclusivamente do penitente, ajudado, de modo
especial, pelo Espírito, e como descansando em Cristo." "É ato ou
hábito mental da parte do penitente, pelo qual, sob a influencia da graça
divina, a pessoa põe sua confiança em Cristo como seu único e todo suficiente
Salvador." "É uma firme confiança em que Cristo morreu pelos meus
pecados, que ele me amou e deu-se a si mesmo por mim." "E crer e
confiar nos méritos de Cristo, e por cuja coisa Deus está disposto a
mostrar-nos misericórdia." "É a fuga do pecador penitente para a
misericórdia de Deus em cristo.
4. Conversão.
Conversão, segundo a definição mais
simples, é abandonar o pecado e aproximar-se de Deus. (Atos 3:19.) O termo é
usado para exprimir tanto o período crítico em que o pecador volta aos caminhos
da justiça como também para expressar o arrependimento de alguma transgressão
por parte de quem já se encontra nos caminhos da justiça. (Mat. 18:3; Luc.
22:32; Tia. 5:20.)
A conversão está muito relacionada com o
arrependimento e a te, e, ocasionalmente, representa tanto um como outro ou
ambos, no sentido de englobar todas as atividades pelas quais o homem abandona
o pecado e se aproxima de Deus. (Atos 3:19; 11:21; 1 Ped. 2:25.) O Catecismo de
Westminster, em resposta à sua própria pergunta, oferece a seguinte e adequada
definição de conversão:
Que é arrependimento para a vida?
Arrependimento para a vida é graça
salvadora, pela qual o pecador, sentindo verdadeiramente o seu pecado, e
lançando mão da misericórdia de Deus em Cristo, e sentindo tristeza por causa
do seu pecado e ódio contra ele, abandona-o e aproxima-se de Deus, fazendo o
firme propósito de, daí em diante, ser obediente a Deus.
Note-se que, segundo essa definição, a
conversão envolve a personalidade toda — intelecto, emoções e vontade.
Como se distingue conversão de salvação?
A conversão descreve o lado humano da salvação. Por exemplo: observa-se que um
pecador, bêbado notório, não bebe mais, nem joga, nem frequenta lugares
suspeitos; ele odeia as coisas que antes amava e ama as coisas que outrora
odiava. Seus amigos dizem: "Ele está convertido; mudou de vida."
Essas pessoas estão descrevendo o que aparece, isto é, o lado humano do fato.
Mas, do lado divino, diríamos que Deus perdoou o pecado do pecador e lhe deu um
novo coração.
Mas isso significa que a conversão seja
inteiramente uma questão de esforço humano? Como a fé e o arrependimento estão
inclusos na conversão, a conversão é uma atividade humana; mas ao mesmo tempo é
um efeito sobrenatural sendo ela a reação por parte do homem ante o poder
atrativo da graça de Deus e da sua Palavra. Portanto, a conversão é o resultado
da cooperação das atividades divinas e humanas. "Assim também operai a
vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o
querer como o efetuar segundo a sua boa vontade" (Fil. 2:12,13). As
seguintes passagens referem-se ao lado divino da conversão: Jer. 31:18; Atos
3:26. E estas outras referem-se ao lado humano: Atos 3:19; 11:18; Ezeq. 33:11.
Qual se opera primeiro, a regeneração ou
a conversão? As operações que envolvem a conversão são profundas e de caráter
misterioso; por conseguinte, não as analisaremos com precisão matemática. O
teólogo Dr. Strong conta o caso de um candidato à ordenação a quem fizeram a
pergunta acima. Ele respondeu: "Regeneração e conversão são como a bala do
canhão e o furo do cano do canhão — ambos atravessam o cano juntos."
II.
A JUSTIFICAÇÃO
1. Natureza da justificação:
absolvição divina.
A palavra "justificar" é termo
judicial que significa absolver, declarar justo, ou pronunciar sentença de
aceitação. A ilustração procede das relações legais. O réu está perante Deus, o
justo Juiz; mas, ao invés de receber sentença condena-tória, ele recebe a
sentença de absolvição.
O substantivo "justificação"
ou "justiça", significa o estado de aceitação para o qual se entra
pela fé. Essa aceitação é dom gratuito da parte de Deus, posto à nossa
disposição pela fé em Cristo. (Rom. 1:17; 3:21,22.) É o estado de aceitação no
qual o crente permanece (Rom. 5:2). Apesar de seu passado pecaminoso e de
imperfeições no presente, o crente goza de completa e segura posição para com
Deus. "Justificado" é o veredito divino e ninguém o poderá
contradizer. (Rom. 8:34.) Essa doutrina assim se define: "Justificação é
um ato da livre graça de Deus pelo qual ele perdoa todos os nossos pecados e
nos aceita como justos aos seus olhos somente por nos ser imputada a justiça de
Cristo, que se recebe pela fé."
Justificação é primeiramente uma mudança
de posição da parte do pecador, o qual antes era um condenado; agora, porém,
goza de absolvição. Antes estava sob a condenação, mas agora participa da
divina aprovação.
Justificação inclui mais do que perdão
dos pecados e remoção da condenação, pois no ato da justificação Deus coloca o
ofensor na posição de justo. O presidente da República pode perdoar o
criminoso, mas não pode reintegrá-lo na posição daquele que nunca desrespeitou
as leis. Mas a Deus é possível efetuar ambas as coisas! Ele apaga o passado, os
pecados e ofensas, e, em seguida, trata o ofensor como se nunca tivesse
cometido um pecado sequer! O criminoso perdoado não é considerado ou descrito
como bom ou justo; mas Deus, ao perdoar o pecador, o declara justificado, isto
é, justo aos olhos divinos. Juiz algum poderia justificar o criminoso, isto é,
declará-lo homem justo e bom. Se Deus estivesse sujeito às mesmas limitações e
justificasse somente gente boa, então não haveria evangelho nenhum a ser
anunciado aos pecadores. Paulo nos assegura que Deus justifica o ímpio. "O
milagre do Evangelho é que Deus se aproxima dos ímpios, com uma misericórdia
absolutamente justa e os capacita pela fé, a despeito do que são, a entrarem em
nova relação com ele, relação pela qual é possível que se tomem bons. O segredo
do Cristianismo do Novo Testamento, e de todos os avivamentos e reformas da
igreja, é justamente este maravilhoso paradoxo: "Deus justifica o
ímpio!"
Assim vemos que justificação é
primeiramente subtração — o cancelamento dos pecados; segundo, adição —
imputação de justiça.
2. Necessidade da Justificação: a
condenação do homem.
"Como se justificará o homem para
com Deus?" perguntou Jó (9:1). "Que é necessário que eu faça para me
salvar?" interrogou o carcereiro de Filipos. Ambos expressaram a maior de
todas as perguntas: Como pode o homem acertar sua vida perante Deus e ter
certeza da aprovação divina?
A resposta a essa interrogação
encontra-se no Novo Testamento, especialmente na epístola aos Romanos, na qual
se apresenta, em forma sistemática e detalhada, o plano da salvação. O tema do
livro encontra-se no capítulo 1:16,17, o qual se pode parafrasear da seguinte
maneira: O evangelho é o poder de Deus para a salvação dos homens, pois o
evangelho revela aos homens como se pode mudar de posição e de condição, de
maneira que eles sejam justos perante Deus.
Uma das frases proeminentes da mesma
epístola é: "A justiça de Deus." O inspirado apóstolo descreve a
qualidade de justiça que Deus aceita, de forma que o homem que a possui tenha
aceitação como justo perante ele. Essa justiça resulta da fé em Cristo. Paulo
demonstra que todos os homens necessitam dessa justiça de Deus, porque toda a
raça pecou. Os gentios estão sob condenação. Os passos de sua degradação foram
claros: outrora conheceram a Deus (1:19,20); falhando em o servirem e adorarem,
seu coração insensato se obscureceu (1:21,22); a cegueira espiritual os
conduziu à idolatria (verso 23) e a idolatria os conduziu à corrupção moral
(vers. 24-31). São indesculpáveis porque tinham a revelação de Deus na
natureza, e a consciência que aprova ou desaprova seus atos. (Rom. 1:19,20;
2:14,15.) O judeu também está sob condenação. É verdade que ele pertence à
nação escolhida, e conhece a lei de Moisés de há muitos séculos, mas
transgrediu essa lei em pensamentos, atos e palavras (cap. 2). Paulo, assim,
estrondosamente, encerra toda a raça humana sob a condenação: "Ora, nós
sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que
toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus. Por
isso nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela
lei vem o conhecimento do pecado" (Rom. 3:19,20).
Qual será essa "justiça" de
que tanto necessita o homem? A própria palavra significa "retidão",
ou estado de reto, ou justo. A palavra às vezes descreve o caráter de Deus,
como sendo isento de toda imperfeição ou injustiça. Quando aplicada ao homem,
significa o estado de retidão diante de Deus. Retidão significa
"reto", aquilo que se conforma a um padrão ou norma. Por conseguinte,
é o homem que se conforma à lei divina. Mas que acontecerá se esse homem
descobrir que, em vez de ser "reto", ele é perverso (literalmente
"torto") sem poder se endireitar? É então que ele precisa da
justificação — que é obra exclusiva de Deus.
Paulo declarou que pelas obras da lei
ninguém será justificado. Essa declaração não é uma crítica contra a lei, a
qual é santa e perfeita. Significa simplesmente que a lei não foi dada com esse
propósito de fazer justo o povo, e, sim, de suprir a necessidade duma norma de
justiça. A lei pode ser comparada a uma fita métrica que pode medir o
comprimento do pano, sem, contudo, aumentar o comprimento. Podemos compará-la à
balança que determina o nosso peso, sem, contudo, aumentar esse peso.
"Pela lei vem o conhecimento do pecado."
"Mas agora se manifestou sem a lei
a justiça de Deus" (Rom. 3:21). Notem a palavra "agora". Alguém
disse que Paulo dividiu todo o tempo em "agora" e "depois".
Em outras palavras, a vinda de Cristo operou uma grande mudança nas transações
de Deus com os homens. Introduziu uma nova dispensação. Durante séculos os
homens pecavam e aprendiam a impossibilidade de aniquilarem ou vencerem seus
pecados. Mas agora Deus, clara e abertamente, revelou-lhes um novo caminho.
Muitos israelitas julgavam que devia
haver um meio de serem justificados sem ser pela guarda da lei; por duas
razões: 1) perceberam um grande abismo entre as exigências de Deus para com
Israel e seu verdadeiro estado espiritual. Israel era injusto, e a salvação não
podia proceder dos próprios méritos ou esforços. A salvação teria que proceder
de Deus, por sua intervenção. 2) Muitos israelitas reconheceram por experiência
própria sua incapacidade para guardar perfeitamente a lei. Chegaram à conclusão
de que devia haver uma justiça alcançável independentemente de suas próprias obras
e esforços. Em outras palavras,-anelavam por redenção e graça. E Deus lhes
assegurou que tal justiça lhes seria revelada. Paulo (Rom. 3:21) fala da
justiça de Deus sem a lei, "tendo o testemunho da lei (Gên. 3:15; 12:3;
Gál. 3:6-8) e dos profetas (Jer. 23:6; 31:31-34)". Essa justiça incluía
tanto o perdão dos pecados como a justiça íntima do coração.
Na verdade, Paulo afirma que a
justificação pela fé foi o plano original de Deus para a salvação dos homens; a
lei foi acrescentada para disciplinar os israelitas e fazê-los sentir a
necessidade de redenção. (Gál. 3:19-26.) Mas a lei em si não possuía poder para
salvar, como o termômetro não tem poder para baixar a febre que ele registra.
Seria o próprio Senhor, o Salvador do seu povo; e sua graça seria a sua única
esperança.
Infelizmente, os judeus exaltaram a lei,
imaginando que ela fosse um agente justificador, e elaboraram um plano de
salvação baseado no mérito pela guarda dos seus preceitos e das tradições que
lhes foram acrescentadas. "Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus, e
procurando estabelecer a sua própria justiça, não se sujeitaram à justiça de
Deus" (Rom. 10:3). Não conheceram o propósito da lei. Confiaram nela como
meio de salvação espiritual, ignorando a pecabilidade dos seus próprios corações,
e imaginavam que seriam salvos pela guarda da letra da lei. Por essa razão,
quando Cristo veio, oferecendo-lhes a salvação dos seus pecados, pensavam que
não precisavam dum Messias como ele. (vide João 8:32-34.) O pensamento dos
judeus era o de estabelecer rígidos requisitos pelos quais conseguiriam a vida
eterna. "Que faremos para executarmos as obras de Deus?" perguntaram.
E não se prontificaram a obedecer à indicação de Jesus: "A obra de Deus é
esta: Que creiais naquele que ele enviou" (João 6:28,29). Tão ocupados
estavam em estabelecer seu próprio sistema de justiça, que perderam, por
completo, a oportunidade de serem participantes da justificação divinamente
provida para os homens pecadores. Na viagem, um trem representa o meio de
conseguir um determinado alvo. Ninguém pensa em fazer do trem sua morada;
antes, preocupa-se tão somente em chegar ao destino. Ao chegar a esse destino,
deixa-se o trem. A lei foi dada a Israel com o propósito de conduzi-lo a um
destino, e esse destino é a fé na graça salvadora de Deus. Mas, ao aparecer o
Redentor, os judeus satisfeitos consigo mesmos, fizeram o papel do viajante
que, chegando ao destino, se recusa a deixar o trem, embora o condutor lhe
diga: "Estamos no fim da viagem"! Os judeus se recusaram a deixar as
poltronas do "trem do Antigo Pacto", muito embora o Novo Testamento
lhes assegurasse: "O fim da lei é Cristo", e que se cumpriu o Antigo
Testamento. (Rom. 10:4.)
3. A fonte da justificação: a
graça.
Graça significa, primeiramente, favor,
ou a disposição bondosa da parte de Deus. Alguém a definiu como a "bondade
genuína e favor não recompensados", ou "favor não merecido".
Dessa forma a graça nunca incorre em dívida. O que Deus concede, concede-o como
favor; nunca podemos recompensá-lo ou pagar-lhe. A salvação é sempre
apresentada como dom, um favor não merecido, impossível de ser recompensado; é
um benefício legítimo de Deus. (Rom. 6:23) O serviço cristão portanto, não é
pagamento pela graça de Deus; serviço cristão é um meio que o crente aproveita
para expressar sua devoção e amor a Deus. "Nós o amamos porque ele
primeiramente nos amou."
A graça é transação de Deus com o homem,
absolutamente independente da questão de merecer ou não merecer. "Graça
não é tratar a pessoa como merece, nem tratá-la melhor do que merece",
escreveu L. S. Chafer. "E tratá-la graciosamente sem a mínima referência
aos seus méritos. Graça é amor infinito expressando-se em bondade
infinita."
Devemos evitar certo mal-entendido.
Graça não significa que Deus é de coração tão magnânimo que abranda a
penalidade ou desiste dum justo juízo.
Sendo Deus o Soberano perfeito do
universo, ele não pode tratar indulgentemente o assunto do pecado pois isso
depreciaria sua perfeita santidade e justiça. A graça de Deus aos pecadores
revela-se no fato de que ele mesmo pela expiação de Cristo, pagou toda a pena
do pecado. Por conseguinte, ele pode justamente perdoar o pecado sem levar em
conta os merecimentos ou não merecimentos. Os pecadores são perdoados, não
porque Deus seja benigno para desculpar os pecados deles, mas porque existe
redenção mediante o sangue de Cristo. (Rom. 3:24; Efés. 1:6.) Os pregadores
modernistas erram nesse ponto; pensam que Deus por sua benignidade perdoa os
pecados; entretanto, seu perdão baseia-se na mais rigorosa justiça. Ao perdoar
o pecado, "Ele é fiel e justo" (1 João 1:9). A graça de Deus
revela-se no fato de haver ele provido uma expiação pela qual pode ser justo e
justificador e, ao mesmo tempo, manter sua santa e imutável lei. A graça
manifesta-se independente das obras ou atividades dos homens. Quando a pessoa
está sob a lei, não pode estar sob a graça; e quando está sob a graça, não pode
estar sob a lei. Está "sob a lei" quando tenta assegurar a sua
salvação ou santificação como recompensa, por fazer boas obras ou observar
certas cerimônias. Essa pessoa está "sob a graça" quando assegura
para si a salvação por confiar na obra que Deus fez por ela, e não na obra que
ela faz para Deus. As duas esferas são mutuamente exclusivas. (Gál. 5:4.) A lei
diz: "paga tudo"; mas a graça diz: "Tudo está pago." A lei
representa uma obra a fazer; a graça é uma obra consumada. A lei restringe as
ações; a graça transforma a natureza. A lei condena; a graça justifica. Sob a
lei a pessoa é servo assalariado; sob a graça é filho em gozo de herança
ilimitada.
Enraizada no coração humano está a ideia
de que o homem deve algo para tornar-se merecedor da salvação. Na igreja
primitiva certos instrutores judaico-cristãos insistiam em que os convertidos
fossem salvos pela fé e a observância da Lei de Moisés. Entre os pagãos, e em
alguns setores da igreja cristã, esse erro tem tomado a forma de auto-castigo,
observância de ritos, peregrinações, e esmolas. A idéia substancial de todos
esses esforços é a seguinte: Deus não é bondoso; o homem não é justo; por
conseguinte, o homem precisa fazer-se justo a fim de tornar Deus benigno. Esse
foi o erro de Lutero, quando, mediante auto-mortificações, envidava esforços
para efetuar a sua própria salvação. "Oh quando será que você se tornará
piedoso a ponto de ter um Deus benigno?" exclamou certa vez, referindo-se
a si próprio. Finalmente Lutero descobriu a grande verdade básica do evangelho:
Deus é bondoso; portanto deseja fazer justo o homem. A graça do amoroso Pai,
revelada na morte expiatória de Cristo é um dos elementos que distinguem o
Cristianismo das demais religiões.
Salvação é a justiça de Deus imputada ao
pecador; não é a justiça imperfeita do homem. Salvação é divina reconciliação;
não é regulamento humano. Salvação é o cancelamento de todos os pecados; não é
eliminar alguns pecados. Salvação é ser libertado da lei e estar morto para a
lei; não é ter prazer na lei ou obedecer á lei. Salvação é regeneração divina;
não é reforma humana. Salvação é ser aceitável a Deus; não é tornar-se
excepcionalmente bom. Salvação é perfeição em Cristo; não é competência de
caráter. A salvação, sempre e somente, procede de Deus; nunca procede do homem.
— Lewis Sperry Chofer. Usa-se, às vezes, a palavra "graça", no
sentido íntimo, para indicar a operação da influência divina (Efés. 4:7) e seus
efeitos (Atos 4:33; 11:23; Tia. 4:6; 2 Cor. 12:9). As operações desse aspecto
da graça têm sido classificadas da seguinte maneira: Graça proveniente
(literalmente, "que vem antes") é a influência divina que precede a
conversão da pessoa, influências que produzem o desejo de voltar para Deus. É o
efeito do favor divino em atrair os homens (João 6:44) e convencer os
desobedientes. (Atos 7:51.) Essa graça, às vezes, é denominada eficiente,
tornando-se eficaz em produzir a conversão, quando não encontra resistência.
(João 5:40; Atos 7:51; 13:46.) A graça efetiva capacita os homens a viverem
justamente, a resistirem à tentação, e a cumprirem o seu dever. Por isso
pedimos graça ao Senhor para cumprir uma determinada tarefa. A graça habitual é
o efeito da morada do Espírito Santo que resulta em uma vida plena do fruto do
Espírito (Gál. 5:22,23).
4. Fundamento da justificação: a
justiça de Cristo.
Como pode Deus tratar o pecador como
pessoa justa? Resposta: Deus lhe provê a justiça. Mas será que isso é apenas
conceder o título de "bom" e "justo" a quem não o merece?
Resposta: O Senhor Jesus Cristo ganhou o título a favor do pecador, o qual é
declarado justo "mediante a redenção que há em Cristo Jesus".
Redenção significa completa libertação por preço pago.
Cristo ganhou essa justiça por nós, por
sua morte expiatória, como está escrito: "Ao qual Deus propôs para
propiciação pela fé no seu sangue." Propiciação é aquilo que assegura o
favor de Deus para com os que não o merecem. Cristo morreu por nós para nos
salvar da justa ira de Deus e nos assegurar o seu favor. A morte e a
ressurreição de Cristo representam a provisão externa para a salvação do homem,
referindo-se o termo justificação à maneira pela qual os benefícios salvadores
da morte de Cristo são postos à disposição do pecador. Fé é o meio pelo qual o
pecador lança mão desses benefícios.
Consideremos a necessidade de justiça.
Como o corpo necessita de roupa, assim a alma necessita de caráter. Assim como
é necessário apresentar-se em público decentemente vestido, assim é necessário
que o homem se vista da roupa dum caráter perfeitamente justo para
apresentar-se diante de Deus. (Vide Apo. 19:8; 3:4; 7:13,14.) As vestes do
pecado estão sujas e rasgadas (Zac. 3:1-4); se o pecador se vestisse de sua própria
bondade e seus próprios méritos, alegando serem boas as suas obras, elas seriam
consideradas como "trapos de imundície". (Isa. 64:6.) A única
esperança do homem é adquirir a justiça que Deus aceita — a "justiça de
Deus". Visto que o homem por natureza está destituído dessa justiça, terá
que ser provida para ele essa justiça; terá que ser uma justiça que lhe seja
imputada, não merecida.
Essa justiça foi comprada pela morte
expiatória de Cristo. (Isa. 53:5,11; 2 Cor. 5:21; Rom. 4:6; 5:18,19.) Sua morte
foi um ato perfeito de justiça, porque satisfez a lei de Deus. Foi também um
ato perfeito de obediência. Tudo isso foi feito por nós e posto a nosso
crédito. "Deus nos aceita como justos aos seus olhos somente por nos ter
sido imputada a justiça de Cristo", afirma determinada declaração
doutrinária.
O ato pelo qual Deus credita essa
justiça à nossa conta chama-se imputação. Imputação é levar à conta de alguém
as consequências do ato de outrem. As consequências do pecado do homem foram
levadas à conta de Cristo, e as consequências da obediência de Cristo foram
levadas à conta do crente. Ele vestiu-se das vestes do pecado para que nós
pudéssemos nos vestir do seu "manto de justiça". "Cristo... para
nós foi feito por Deus... justiça" (1Cor. 1:30). Ele torna-se "O
Senhor Justiça Nossa" (Jer. 23:6).
Cristo expiou nossa culpa, satisfez a
lei, tanto por obediência como por sofrimento, e tornou-se nosso substituto, de
maneira que, estando unidos com ele pela fé, sua morte toma-se nossa morte, e
sua obediência toma-se nossa obediência. Deus então nos aceita, não por
qualquer bondade própria que nós tenhamos, nem pelas coisas imperfeitas que são
as nossas "obras" (Rom. 3:28; Gál. 2:16), nem por nossos méritos, mas
porque nos foi creditada a perfeita e toda-suficiente justiça de Cristo. Por
causa de Cristo, Deus trata o homem culpado, quando este se arrepende e crê,
como se fosse justo. Os méritos de Cristo são creditados a ele.
Também surgem as seguintes perguntas na
mente da pessoa que investiga: sim, a justificação que salva é algo externo e
concernente à posição legal do pecador; mas não haverá mudança alguma na
condição moral? Afeta a sua situação, mas não afetará sua conduta? A justiça é
imputada somente e não concedida de modo prático? Na justificação Cristo somente
será por nós, ou agirá também em nós? Em outras palavras, parece que a
imputação da justiça desonraria a lei se não incluísse a certeza de justiça
futura.
A resposta é que a fé que justifica é o
ato inicial da vida cristã e esse ato inicial, quando a fé for viva, é seguido
por uma transformação interna conhecida como regeneração. A fé une o crente com
o Cristo vivo; essa união com o Autor da vida resulta em transformação do
coração. "Se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já
passaram; eis que tudo se fez novo" (2 Cor. 5:17). A justiça é imputada no
ato da justificação e é comunicada na regeneração. O Cristo que é por nós
torna-se o Cristo em nós.
A fé pela qual a pessoa é realmente
justificada, necessariamente tem que ser uma fé viva. Uma fé viva produzirá uma
vida reta; será uma fé que "opera pelo amor" (Gál. 5:6). Outrossim,
vestindo a justiça de Cristo, o crente é exortado a viver uma vida em
conformidade com o caráter de Cristo. "Porque o linho fino são as justiças
dos santos" (literalmente os atos de justiça) (Apoc. 19:8). A verdadeira
salvação requer uma vida de santidade prática. Que julgamento faríamos da
pessoa que sempre se vestisse de roupa imaculada mas nunca lavasse o corpo?
Incoerente, diríamos! Mas não menos incoerente é a pessoa que alega estar
vestida da justiça de Cristo, e, ao mesmo tempo, vive de modo indigno do
evangelho. Aqueles que se vestem da justiça de Cristo terão cuidado de
purificar-se do mesmo modo como ele é puro. (1 João 3:3.)
5. Os meios da justificação: a fé.
Visto que a lei não pode justificá-lo, a
única esperança do homem é receber "justiça sem lei" (isto,
entretanto, não significa injustiça ilegal, nem tampouco religião que permita o
pecado; significa sim, uma mudança de posição e condição). Essa é a "justiça
de Deus", isto é, a justiça que Deus concede, sendo também um dom, pois o
homem é incapaz de operar a justiça. (Efés. 2:8-10.)
Mas um dom tem que ser aceito. Como,
então, será aceito o dom da justiça? Ou, usando a linguagem teológica: qual é o
instrumento que se apropria da justiça de Cristo? A resposta é: "pela fé
em Jesus Cristo." A fé é a mão, por assim dizer, que recebe o que Deus
oferece. Que essa fé é a causa instrumental da justificação prova-se pelas
seguintes referências: Rom. 3:22; 4: 11; 9:30; Heb. 11:7; Fil. 3:9.
Os méritos de Cristo são comunicados e
seu interesse salvador é assegurado por certos meios. Esses meios
necessariamente são estabelecidos por Deus e somente ele os distribui. Esses
meios são a fé — o princípio único que a graça de Deus usa para restaurar-nos à
sua imagem e ao seu favor. Nascida, como é, no pecado, herdeira da miséria, a
alma carece duma transformação radical, tanto por dentro como por fora; tanto
diante de Deus como diante de si própria. A transformação diante de Deus
denomina-se justificação; a transformação interna espiritual que se segue,
chama-se regeneração pelo Espírito Santo. Esta fé é despertada no homem pela
influência do Espírito Santo, geralmente em
conexão com a Palavra. A fé lança mão da
promessa divina e apropria-se da salvação. Ela conduz a alma ao descanso em
Cristo como Salvador e Sacrifício pelos pecados; concede paz à consciência e dá
esperança consoladora do céu. Sendo essa fé viva e de natureza espiritual, e
cheia de gratidão para com Cristo, ela é rica em boas obras de toda espécie.
"Porque pela graça sois salvos, por
meio da fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus. Não vem das obras, para que
ninguém se glorie" (Efés. 2:8,9). O homem nenhuma coisa possuía com que
comprar sua justificação. Deus não podia condescender em aceitar o que o homem
oferecia; o homem também não tinha capacidade para cumprir a exigência divina.
Então Deus graciosamente salvou o homem, sem pagar este coisa alguma
—"gratuitamente pela sua graça" (Rom. 3:24). Essa graça gratuita é
recebida pela fé. Não existe mérito nessa fé, como não cabem elogios ao mendigo
que estende a mão para receber uma esmola. Esse método fere a dignidade do
homem, mas perante Deus, o homem decaído não tem mais dignidade; o homem não
tem possibilidades de acumular bondade suficiente para adquirir a sua salvação.
"Nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei" (Rom.
3:20).
A doutrina da justificação pela graça de
Deus, mediante a fé do homem, remove dois perigos: primeiro, o orgulho de auto-justiça e de auto-esforço; segundo, o medo de que a pessoa seja fraca
demais para conseguir a salvação.
Se a fé em si não é meritória,
representando apenas a mão que se estende para receber a livre graça de Deus,
que é então que lhe dá poder, e que garantia oferece ela à pessoa que recebeu
esse dom gratuito, de que viverá uma vida de justiça? Importante e poderosa é a
fé porque ela une a alma a Cristo, e é justamente nessa união que se descobre o
motivo e o poder para a vida de justiça. "Porque todos quantos fostes
batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo"(Gál. 3:27). "E os
que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e
concupiscências" (Gál. 5:24).
A fé não só recebe passivamente mas
também usa de modo ativo aquilo que Deus concede. É assunto próprio do coração
(Rom. 10:9,10; vide Mat. 15:19; Prov. 4:23), e quem crê com o coração, crê
também com suas emoções, afeições e seus desejos, ao aceitar a oferta divina da
salvação. Pela fé, Cristo mora no coração (Efés. 3:17). A fé opera pelo amor (a
"obra da fé"... 1Tess. 1:3), isto é, representa um princípio
enérgico, bem como uma atitude receptiva. A fé, por conseguinte, é poderoso
motivo para a obediência e para todas as boas obras. A fé envolve a vontade e
está ligada a todas as boas escolhas e ações, pois "tudo que não é de fé é
pecado" (Rom. 14:23).Ela inclui a escolha e a busca da verdade (2 Tess.
2:12) e implica sujeição à justiça de Deus (Rom. 10:3).
O que se segue representa o ensino
bíblico concernente à relação entre fé e obras. A fé se opõe às obras quando
por obras entendemos boas obras que a pessoa faz com o intuito de merecer a
salvação. (Gál. 3:11.) Entretanto, uma fé viva produzirá obras (Tia. 2:26), tal
qual uma árvore viva produzirá frutos. A fé é justificada e aprovada pelas
obras (Tia. 2:18), assim como o estado de saúde das raízes duma boa árvore é
indicado pelos frutos. A fé se aperfeiçoa pelas obras (Tia. 2:22), assim como a
flor se completa ao desabrochar. Em breves palavras, as obras são o resultado
da fé, a prova da fé, e a consumação da fé.
Imagina-se que haja contradição entre os
ensinos de Paulo e de Tiago. O primeiro, aparentemente, teria ensinado que a
pessoa é justificada pela fé, o último que ela é justificada pelas obras. (Vide
Rom. 3:20 e Tia. 2:14-16.) Contudo, uma compreensão do sentido em que eles
empregaram os termos, rapidamente fará desvanecer a suposta dificuldade. Paulo
está recomendando uma fé viva que confia somente no Senhor; Tiago está
denunciado uma fé morta e formal que representa, apenas, um consentimento
mental. Paulo está rejeitando as obras mortas da lei, ou obras sem fé; Tiago
está louvando as obras vivas que demonstram a vitalidade da fé. A justificação
mencionada por Paulo refere-se ao início da vida cristã; Tiago usa a palavra
com o significado de vida de obediência e santidade como evidência exterior da
salvação. Paulo está combatendo o legalismo, ou a confiança nas obras como meio
de salvação; Tiago está combatendo antinomianismo, ou seja, o ensino de que não
importa qual seja a conduta da pessoa, uma vez que creia. Paulo e Tiago não são
soldados lutando entre si; são soldados da mesma linha de combate, cada qual
enfrentando inimigos que os atacam de direções opostas.
III.
A REGENERAÇÃO
1. Natureza da regeneração.
A regeneração é o ato divino que concede
ao penitente que crê uma vida nova e mais elevada mediante união pessoal com
Cristo. O Novo Testamento assim descreve a regeneração:
(a) Nascimento.
Deus o pai é quem "gerou", e o crente é "nascido" de Deus
(1 João 5:1), "nascido do Espírito" (João 3:8), "nascido do
alto" (tradução literal de João 3:3,7). Esses termos referem-se ao ato da
graça criadora que faz do crente um filho de Deus.
(b) Purificação.
Deus nos salvou pela "lavagem" (literalmente, lavatório ou banho) da
regeneração". (Tito 3:5.) A alma foi lavada completamente das imundícies
da vida de outrora, recebendo novidade de vida, experiência simbolicamente
expressa no ato de batismo. (Atos
(c) Vivificação.
Somos salvos não somente pela "lavagem da regeneração", nas também
pela "renovação do Espírito Santo" (Tito 3:5. Vide também Col. 3:10;
Rom. 12:2; Efés. 4:23; Sal. 51:10). A essência da regeneração é uma nova vida
concedida por Deus Pai, mediante Jesus Cristo e pela operação do Espírito
Santo.
(d) Criação.
Aquele que criou o homem no princípio e soprou em suas narinas o fôlego de
vida, o recria pela operação do seu Espírito Santo. (2 Cor. 5:17;Efés. 2:10;
Gál. 6:15; Efés. 4:24; vide Gên. 2:7.) O resultado prático é uma transformação
radical da pessoa em sua natureza, seu caráter, desejos e propósitos.
(e) Ressurreição.
(Rom. 6:4,5; Col. 2:13; 3:1; Efés. 2:5, 6.) Como Deus vivificou o barro
inanimado e o fez vivo para com o mundo físico, assim ele vivifica a alma em
seus pecados e a faz viva para as realidades do mundo espiritual. Esse ato de
ressurreição espiritual é simbolizado pelo batismo nas águas. A regeneração é
"a grande mudança que Deus opera na alma quando a vivifica; quando ele a
levanta da morte do pecado para a vida de justiça" (João Wesley).
Notar-se-á que os termos acima citados
são apenas variantes de um grande pensamento básico da regeneração, isto é, uma
divina comunicação duma nova vida à alma do homem. Três fatos científicos
relativos à vida natural também se aplicam à vida espiritual; isto é, ela surge
repentinamente; aparece misteriosamente, e desenvolve-se gradativamente.
Regeneração é o aspecto singular da
religião do Novo Testamento. Nas religiões pagãs, reconhece-se universalmente a
permanência do caráter. Embora essas religiões recomendem penitências e ritos,
pelos quais a pessoa espera expiar os seus pecados, não há promessa de vida e
de graça para transformar a sua natureza. A religião de Jesus Cristo é "a
única religião no mundo que declara tomar a natureza decaída do homem e
regenerá-la, colocando-a em contacto com a vida de Deus". Assim declara
fazer, porque o Fundador do Cristianismo é Pessoa Viva e Divina, que vive para
salvar perfeitamente os que por ele se chegam a Deus. (Heb. 7:25.) Não existe
nenhuma analogia entre a religião cristã, e, digamos, o Budismo ou a religião
maometana. De maneira nenhuma se pode dizer: "quem tem Buda tem a
vida". (Vide 1João 5:12.) Buda pode ter algo em relação à moralidade. Pode
estimular, causar impressão, ensinar, e guiar, mas nenhum elemento novo foi
acrescido às almas que professam o Budismo. Tais religiões podem ser produtos
do homem natural e moral. Mas o Cristianismo declara-se ser muito mais. Além
das coisas de ordem natural e moral, o homem desfruta algo mais na Pessoa de
Alguém mais, Jesus Cristo.
2. Necessidade da regeneração.
A entrevista de nosso Senhor com
Nicodemos (João 3) proporciona um excelente fundo histórico para o estudo deste
tópico. As primeiras palavras de Nicodemos revelam uma série de emoções
provenientes do seu coração. A declaração abrupta de Jesus no verso 3, que
parece ser uma repentina mudança do assunto, explica-se pelo fato de Jesus
estar respondendo ao coração de Nicodemos e não às palavras de sua
interrogação. As primeiras palavras de Nicodemos revelam. 1) Fome espiritual.
Se esse chefe judaico tivesse expressado o desejo de sua alma, talvez teria
dito: "Estou cansado do ritualismo morto da sinagoga vou lá mas volto para
casa com a mesma fome com que saí. Infelizmente, a glória divina afastou-se de
Israel; não há visão e o povo perece. Mestre, a minh'alma suspira pela
realidade! Pouco conheço de tua pessoa, mas tuas palavras tocaram-me o coração.
Teus milagres convenceram-me de que és Mestre vindo de Deus. Gostaria de te
acompanhar. 2) Faltou a Nicodemos profunda convicção. Sentiu a sua necessidade,
mas necessidade dum instrutor e não dum Salvador. Tal qual a mulher samaritana,
ele queria a água da vida (João 4:15), mas, como aquela, Nicodemos teve de
compreender que era pecador, que precisava de purificação e transformação. (João
4:16-18.) 3) Nota-se nas suas palavras um rasto de auto-complacência, coisa
muito natural num homem de sua idade e posição. Ele diria a Jesus: "Creio
que foste enviado a restaurar o reino de Israel, e vim dar-te alguns conselhos
quanto aos planos para conseguir esse objetivo." Provavelmente ele supôs
que sendo israelita e filho de Abraão, essas qualificações seriam suficientes
para o tornarem membro do reino de Deus.
"Jesus respondeu, e disse-lhe: Na
verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o
reino de Deus." Parafraseando essa passagem, Jesus diria: "Nicodemos,
tu não podes unir-te à minha companhia como se te unisses a uma organização. O
pertencer à minha companhia não depende da qualidade de tua vida; minha causa
não é outra senão aquela do reino de Deus, e tu não podes entrar nesse reino
sem experimentar uma transformação espiritual. O reino de Deus é muito
diferente do que estás pensando, e o modo de estabelecê-lo e de juntar seus
súditos é muito diferente do meio de que estás cogitando."
Jesus apontou a necessidade mais
profunda e universal de todos os homens — uma mudança radical e completa da
natureza e caráter do homem em sua totalidade. Toda a natureza do homem ficou
deformada pelo pecado, a herança da queda; essa deformação moral reflete-se em
sua conduta e em todas as suas relações. Antes que o homem possa ter uma vida
que agrade a Deus, seja no presente ou na eternidade, sua natureza precisa
passar por uma transformação tão radical, que seja realmente um segundo nascimento.
O homem não pode transformar-se a si mesmo; essa transformação terá que vir de
cima.
Jesus não tentou explicar o como do novo
nascimento, mas explicou opor quê do assunto. "O que é nascido da carne é
carne, e o que é nascido de Espírito é espírito." Carne e espírito
pertencem a reinos diferentes, e um não pode produzir o outro. A natureza
humana pode gerar a natureza humana, mas somente o Espírito Santo pode gerar a
natureza espiritual. A natureza humana somente pode produzir a natureza humana;
e nenhuma criatura poderá elevar-se acima de sua própria natureza. A vida
espiritual não passa do pai ao filho pela geração natural; ela procede de Deus
para o homem por meio da geração espiritual.
A natureza humana não pode elevar-se
acima de si própria. Escreveu Marcus Dods:
Todas as criaturas possuem certa natureza
segundo a sua espécie, determinada pela sua ascendência. Essa natureza que o
animal recebe dos seus pais determina, desde o princípio, a sua capacidade e a
esfera desse animal. A toupeira não pode subir aos ares como o faz a águia; nem
tampouco pode o filhote da águia cavar um buraco como afaz toupeira. Nenhum
treino jamais fará a tartaruga correr como o antílope, nem fará o antílope tão
forte como o leão... Além de sua natureza, nenhum animal poderá agir.
O mesmo princípio podemos aplicar ao
homem. O destino mais elevado do homem é viver com Deus para sempre; mas a
natureza humana, em seu estado presente, não possui a capacidade para viver no
reino celestial. Portanto, será necessário que a vida celestial desça de cima
para transformar a natureza humana, preparando-a para ser membro desse reino.
3. Os meios de regeneração.
(a) Agência divina.
O Espírito Santo é o agente especial na obra de regeneração. Ele opera a
transformação na pessoa. (João 3:6; Tito 3:5.) Contudo, todas as Pessoas da
Trindade operam nessa obra. Realmente as três Pessoas operam em todas as
divinas operações, embora cada Pessoa exerça certos ofícios que lhe são
peculiares. Dessa forma o Pai é preeminentemente o Criador; contudo, tanto o
Filho como o Espírito Santo são mencionados como agentes na criação. O Pai gera
(Tia. 1:18) e no Evangelho de João, o Filho é apresentado como o Doador da
vida. (Vide caps. 5 e 6.)
Notem especialmente a relação de Cristo
com a regeneração do homem. É ele o Doador da vida. De que maneira ele vivifica
os homens? Vivifica-os por morrer por eles, de forma que, ao comerem sua carne
e beberem seu sangue (que significa crer em sua morte expiatória), eles recebem
a vida eterna. Qual é o processo de conceder a vida aos homens? Uma parte da
recompensa de Cristo era a prerrogativa de conceder o Espírito Santo (Vide João
3:3,13; Gál.3:13,14), e ele ascendeu para que pudesse tomar-se a Fonte da vida
e energia espiritual (João 6:62; Atos 2:33). O Pai tem vida em si (João 5:26);
portanto, ele concede ao Filho ter vida em si; o Pai é a Fonte do Espírito
Santo, mas ele concede ao Filho o poder de conceder o Espírito; desta forma o
Filho é um "Espírito vivificante" (1 Cor. 15:45), tendo poder, não
somente para ressuscitar os mortos, fisicamente, (João 5:25,26) mas também
vivificar as almas mortas dos homens. (Vide Gên 2:7; João 20:22; 1 Cor. 15:45.)
(b) A preparação humana.
Estritamente falando, o homem não pode cooperar no ato de regeneração, que é um
ato soberano de Deus; mas o homem pode tomar parte na preparação para o novo
nascimento. Qual é essa preparação? Resposta: Arrependimento e fé.
4. Efeitos da regeneração.
Podemos agrupá-los sob três tópicos:
posicionais (adoção); espirituais (união com Deus); práticos (a vida de
justiça).
(a) Posicionais.
Quando a pessoa passa pela transformação espiritual conhecida como regeneração,
torna-se filho de Deus e beneficiário de todos os privilégios dessa filiação.
Assim escreve o Dr. William Evans: "Pela adoção, o crente, que já é filho
de Deus, recebe o lugar de filho adulto; dessa forma o menino torna-se filho, o
filho menor torna-se adulto." (Gál. 4:1-7.) A palavra "adoção"
significa literalmente: "dar a posição de filhos" e refere-se, no uso
comum, ao homem que toma para seu lar crianças que não são as suas pelo
nascimento.
Quanto à doutrina, devemos distinguir
entre adoção e regeneração: o primeiro é um termo legal que indica conceder o
privilégio de filiação a um que não é membro da família; o segundo significa a
transformação espiritual que toma a pessoa filho de Deus e participante da
natureza divina. Contudo, na própria experiência, é difícil separar os dois,
visto que a regeneração e a adoção representam a dupla experiência da filiação.
No Novo Testamento a filiação comum é,
às vezes, definida pelo termo "filhos" ("uioi"— no grego),
termo que originou a palavra "adoção"; outras vezes é definida pela
palavra "tekna", no grego, também traduzida por "filhos",
que significa literalmente "os gerados", significando a regeneração.
As duas ideias são distintas e ao mesmo tempo combinadas nas seguintes
passagens: "Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder (implicando
adoção) de serem feitos filhos de Deus... os quais... nasceram... de Deus"
(João 1:12,13). "Vede quão grande caridade nos tem concedido o Pai, que
fôssemos chamados (implicando adoção) filhos de Deus (a palavra que significa
"gerados" de Deus)" (1 João 3:1). Em Rom. 8: 15,16 as duas
idéias se entrelaçam: "Porque não recebestes o espírito de escravidão,
para outra vez estardes em temor, mas recebestes o espírito de adoção de
filhos, pelo qual clamamos Abba, Pai. O mesmo Espírito testifica com o nosso
espírito que somos filhos de Deus."
(b) Espirituais.
Devido à sua natureza, a regeneração envolve união espiritual com Deus e com
Cristo mediante o Espírito Santo; e essa união espiritual envolve habitação
divina (2 Cor. 6:16-18; Gál. 2:20; 4:5,6; 1 João 3:24; 4:13.) Essa união
resulta em um novo tipo de vida e de caráter, descrito de várias maneiras;
novidade de vida (Rom. 6:4); um novo coração (Ezeq. 36:26); um novo espírito
(Ezeq. 11:19); um novo homem (Efés. 4:24); participantes da natureza divina (2
Ped. 1:4). O dever do crente é manter seu contacto com Deus mediante os vários
meios de graça e dessa forma preservar e nutrir a sua vida espiritual.
(c) Práticos.
A pessoa nascida de Deus demonstrará esse fato pelo ódio que tem ao pecado (1
João 3:9; 5:18), por obras de justiça (1 João 2:29), pelo amor fraternal (1
João 4:7) e pela vitória que alcança sobre o mundo (1 João 5:4).
Devemos evitar estes dois extremos:
primeiro, estabelecer um padrão tão baixo que a regeneração se torne questão de
reforma natural; segundo, estabelecer um padrão elevado demais que não leve em
conta as fraquezas dos crentes. Crentes novos que estão aprendendo a andar com
Jesus estão sujeitos a tropeçar, como o bebê que aprende a andar. Mesmo os
crentes mais velhos podem ser surpreendidos em alguma falta. João declara que é
absolutamente inconsistente que a pessoa nascida de Deus, portadora da natureza
divina, continue a viver habitualmente no pecado (1 João 3.9), mas ao mesmo
tempo ele tem cuidado em escrever: "Se alguém pecar, temos um Advogado
para com o Pai, Jesus Cristo, o justo" (1 João 2:1).
IV.
A SANTIFICAÇÃO
1. Natureza da santificação
Em estudo anterior afirmamos que a chave
do significado da doutrina da expiação, encontrada no Novo Testamento, acha-se
no rito sacrificial do Antigo Testamento. Da mesma forma chegaremos ao sentido
da doutrina do Novo Testamento sobre a santificação, pelo estudo do uso no
Antigo Testamento da palavra "santo".
Primeiramente, observa-se que
"santificação", "santidade", e "consagração" são
sinônimos, como o são: "santificados" e "santos". Santificar
é a mesma coisa que fazer santo ou consagrar. A palavra "santo" tem
os seguintes sentidos:
(a) Separação.
"Santo" é uma palavra descritiva da natureza divina. Seu significado
primordial é "separação "; portanto, a santidade representa aquilo
que está em Deus que o toma separado de tudo quanto seja terreno e humano —
isto é, sua perfeição moral absoluta e sua divina majestade.
Quando o Santo deseja usar uma pessoa ou
um objeto para seu serviço, ele separa essa pessoa ou aquele objeto do seu uso
comum, e, em virtude dessa separação, a pessoa ou o objeto toma-se
"santo".
(b) Dedicação.
Santificação inclui tanto a separação de, como dedicação a alguma coisa; essa é
"a condição dos crentes ao serem separados do pecado e do mundo e feitos
participantes da natureza divina, e consagrados à comunhão e ao serviço de Deus
por meio do Mediador".
A palavra "santo" é mais usada
em conexão com o culto. Quando referente aos homens ou objetos, ela expressa o
pensamento de que esses são usados no serviço divino e dedicados a Deus, no
sentido especial de serem sua propriedade. Israel é uma nação santa, por ser
dedicada ao serviço de Jeová; os levitas são santos por serem especialmente
dedicados aos serviços do tabernáculo; o sábado e os dias de festa são santos
porque representam a dedicação ou consagração do tempo a Deus.
(c) Purificação.
Embora o sentimento primordial de "santo" seja separação para
serviço, inclui também a idéia de purificação. O caráter de Jeová age sobre
tudo que lhe é consagrado. Portanto, os homens consagrados a ele participam de
sua natureza. As coisas que lhe são dedicadas devem ser limpas. Limpeza é uma
condição de santidade, mas não a própria santidade, que é, primeiramente,
separação e dedicação.
Quando Jeová escolhe e separa uma pessoa
ou um objeto para o seu serviço, ele opera ou faz com que aquele objeto ou essa
pessoa se torne santo. Objetos inanimados foram consagrados pela unção do
azeite (Êxo. 40:9-11). A nação israelita foi santificada pelo sangue do
sacrifício da aliança. (Êxo. 24:8. Vide Heb. 10:29). Os sacerdotes foram
consagrados pelo representante de Jeová, Moisés, que os lavou com água,
ungiu-os com azeite e aspergiu-os com o sangue de consagração. (Vide Lev., cap.
8.)
Como os sacrifícios do Velho Testamento
eram tipos do sacrifício único de Cristo, assim as várias abluções e unções do
sistema mosaico são tipos da verdadeira santificação que alcançamos pela obra
de Cristo. Assim como Israel foi santificado pelo sangue da aliança, assim
"também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, padeceu
fora da porta" (Heb. 13:12).
Jeová santificou os filhos de Arão para
o sacerdócio pela mediação de Moisés e o emprego de água, azeite e sangue. Deus
o Pai (1 Tess. 5:23) santifica os crentes para um sacerdócio espiritual (1 Ped.
2:5) pela mediação do Filho (I Cor. 1:2,30; Efés 5:26; Heb 2:11), por meio da
Palavra (João 17:17; 15:3), do sangue (Heb. 10:29; 13:12) e do Espírito (Rom.
15:16; 1 Cor. 6:11; 1 Ped. 1:2).
(d) Consagração,
no sentido de viver uma vida santa e justa. Qual a diferença entre justiça e
santidade? A justiça representa a vida regenerada em conformidade com a lei
divina; os filhos de Deus andam retamente ( 1 João 3:6-10). Santidade é a vida
regenerada em conformidade com a natureza divina e dedicada ao serviço divino;
isto pede a remoção de qualquer impureza que estorve esse serviço. "Mas
como é santo aquele que vos chamou, sede vós também santos em toda a vossa
maneira de viver" (1 Ped. 1:15). Assim a santificação inclui a remoção de
qualquer mancha ou sujeira que seja contrária à santidade da natureza divina.
Em seguida à consagração de Israel
surge, naturalmente, a pergunta: "Como deve viver um povo santo?" A
fim de responder a essa pergunta, Deus deu-lhes o código de leis de santidade
que se acham no livro de Levítico. Portanto, em conseqüência da sua
consagração, seguiu-se a obrigação de viver uma vida santa. O mesmo se dá com o
cristão. Aqueles que são declarados santos (Heb. 10:10) são exortados a seguir
a santidade (Heb. 12:14); aqueles que foram purificados (1 Cor. 6:11) são
exortados a purificar-se a si mesmos (2 Cor. 7:1).
(e) Serviço.
A aliança é um estado de relação entre Deus e os homens no qual ele é o Deus
deles e eles o seu povo, o que significa um povo adorador. A palavra
"santo" expressa essa relação contratual. Servir a Deus, nessa
relação, significa ser sacerdote; por conseguinte, Israel é descrito como nação
santa e reino de sacerdotes (Êxo. 19:6). Qualquer impureza que venha a
desfigurar essa relação precisa ser lavada com água ou com o sangue da purificação.
Da mesma maneira os crentes do Novo
Testamento são "santos", isto é, um povo santo consagrado. Pelo
sangue da aliança tornaram-se "sacerdócio real, a nação santa...
sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por
Jesus Cristo" (1 Ped. 2:9,5); oferecem o sacrifício de louvor (Heb. 13:15)
e dedicam-se como sacrifícios vivos sobre o altar de Deus (Rom. 12:1).
Assim vemos que o serviço é elemento
essencial da santificação ou santidade, pois é esse o único sentido em que os
homens podem pertencer a Deus, isto é, como seus adoradores que lhe prestam
serviço. Paulo expressou perfeitamente esse aspecto da santidade quando disse
acerca de Deus: "De quem eu sou, e a quem sirvo" (Atos 27:23).
Santificação envolve ser possuído por Deus e servir a ele.
2. O tempo da santificação.
A santificação reúne:
1) idéia de posição perante Deus e
instantaneidade;
2) prática e progressiva.
(a) Posicional e instantânea.
A seguinte declaração representa o ensino dos que aderem à teoria de
santificação da "segunda obra definida", feita por alguém que ensinou
essa doutrina durante muitos anos:
Supõe-se que a justificação é obra da
graça pela qual os pecadores, ao se entregarem a Cristo, são feitos justos e
libertados dos hábitos pecaminosos. Mas no homem meramente justificado
permanece um princípio de corrupção, uma árvore má, "uma raiz de
amargura", que continuamente o provoca a pecar. Se o crente obedece a esse
impulso e deliberadamente peca, ele perde sua justificação; segue-se portanto,
a vantagem de ser removido esse impulso mau, para que diminua a possibilidade
de se desviar. A extirpação dessa raiz pecaminosa é santificação. Portanto, é a
purificação da natureza de todo pecado congênito pelo sangue de Cristo
(aplicado pela fé ao realizar-se a plena consagração), e o fogo purificador do
Espírito Santo, o qual queima toda a escória, quando tudo é depositado sobre o
altar do sacrifício. Isso, e somente isso, é verdadeira santificação — a
segunda obra definida da graça, subseqüente à justificação, e sem a qual essa
justificação provavelmente se perderá.
A definição supra citada ensina que a
pessoa pode ser salva ou justificada sem ser santificada. Essa teoria, porém, é
contrária ao ensino do Novo Testamento.
O apóstolo Paulo escreve a todos os
crentes como a "santos" (literalmente, "os santificados") e
como já santificados (1 Cor. 1:2; 6:11). Mas essa carta foi escrita para
corrigir esses cristãos por causa de sua carnalidade e pecados grosseiros. (1
Cor. 3:1; 5:1,2,7,8.) Eram "santos" e "santificados em
Cristo", mas alguns desses estavam muito longe de ser exemplos de cristãos
na conduta. Foram chamados a ser santos, mas não se portavam dignos dessa vocação
santa.
Segundo o Novo Testamento existe, pois,
um sentido em que a santificação é simultânea com a justificação.
(b) Prática e progressiva.
Mas será que essa santificação consiste somente em ser conferida a posição de
santos? Não, essa separação inicial é apenas o começo duma vida progressiva de
santificação. Todos os cristãos são separados para Deus em Jesus Cristo; e
dessa separação surge a nossa responsabilidade de viver para ele. Essa
separação deve continuar diariamente: o crente deve esforçar-se sempre para
estar conforme à imagem de Cristo. "A santificação é a obra da livre graça
de Deus, pela qual o homem todo é renovado segundo a imagem de Deus,
capacitando-nos a morrer para o pecado e viver para a justiça." Isso não
quer dizer que vamos progredir até alcançar a santificação e, sim, que
progredimos na santificação da qual já participamos.
A santificação é posicionai e prática —
posicional em que é primeiramente uma mudança de posição pela qual o imundo
pecador se transforma em santo adorador; prática porque exige uma maneira santa
de viver. A santificação adquirida em virtude de nova posição indica-se pelo
fato de que todos os coríntios foram chamados "santificados em Cristo
Jesus, chamados santos" (1 Cor. 1:2). A santificação progressiva está
implícita no fato de alguns serem descritos como "carnais" (1 Cor.
3:3), o que significa que sua presente condição não estava à altura de sua
posição concedida por Deus. Em razão disso, foram exortados a purificar-se e
assim melhorar sua consagração até alcançarem a perfeição. Esses dois aspectos
da santificação estão implícitos no fato de que aqueles que foram tratados como
santificados e santos (1 Ped. 1:2; 2:5), são exortados a serem santos (1 Ped.
1:15). Aqueles que estavam mortos para o pecado (Col 3:3) são exortados a mortificar
(fazer morto) seus membros pecaminosos (Col 3:5). Aqueles que se despiram do
homem velho (Col. 3:9) são exortados a vestirem-se ou revestirem-se do homem
novo. (Efés 4:22; Col. 3:8.)
3. Meios divinos de santificação.
São meios divinamente estabelecidos de
santificação: o sangue de Cristo, o Espírito Santo e a Palavra de Deus. O
primeiro proporciona, primeiramente', a santificação absoluta, quanto à posição
perante Deus. É uma obra consumada que concede ao pecador penitente uma posição
perfeita em relação a Deus. O segundo meio é interno, efetuando a transformação
da natureza do crente. O terceiro meio é externo e prático, e diz respeito ao
comportamento do crente. Dessa forma, Deus fez provisão tanto para a
santificação interna como externa.
(a) O sangue de Cristo,
(Eterno, absoluto e posicionai.) (Heb. 13:12; 10:10,14; 1João 1:7.) Em que
sentido seria a pessoa santificada pelo sangue de Cristo? Em resultado da obra
consumada de Cristo, o pecador penitente é transformado de pecador impuro em
adorador santo. A santificação é o resultado dessa "maravilhosa obra
redentora do Filho de Deus, ao oferecer-se no Calvário para aniquilar o pecado
pelo seu sacrifício. Em virtude desse sacrifício, o crente é eternamente
separado para Deus; sua consciência é purificada, e ele próprio é transformado
de pecador impuro, em santo adorador, unido em comunhão com o Senhor Jesus
Cristo; pois, "assim o que santifica, como os que são santificados, são
todos de um; por cuja causa não se envergonha de lhes chamar irmãos" (Heb.
2:11).
Que haja um aspecto contínuo na
santificação pelo sangue, infere-se de 1 João 1:7: "O sangue de Jesus
Cristo, seu Filho, nos purifica de todo pecado." Se houver comunhão entre
o santo Deus e o homem, necessariamente terá que haver uma provisão para
remover a barreira de pecado, que impede essa comunhão, uma vez que os melhores
homens ainda assim são imperfeitos. Ao receber Isaías a visão da santidade de
Deus, ele ficou abatido ao perceber a sua falta de santidade; e não estava em
condições de ouvir a mensagem divina enquanto a brasa do altar não purificasse
seus lábios. A consciência do pecado ofusca a comunhão com Deus; confissão e fé
no eterno sacrifício de Cristo removem essa barreira. (1 João 1:9.)
(b) O Espírito Santo.
(Santificação Interna.) (1 Cor. 6:11; 2 Tess. 2:12; 1 Ped. 1:1,2; Rom. 15:16.)
Nessas passagens a santificação pelo Espírito Santo é apresentada como o início
da obra de Deus nos corações dos homens, conduzindo-os ao inteiro conhecimento
da justificação pela fé no sangue aspergido de Cristo. Tal qual o Espírito
pairava por cima do caos original (Gên. 1:2), seguindo-se o estabelecimento da
ordem pelo Verbo de Deus, assim o Espírito paira sobre a alma humana, fazendo-a
abrir-se para receber a luz e a vida de Deus. (2 Cor. 4:6.)
O capítulo 10 de Atos proporciona uma
ilustração concreta da santificação pelo Espírito Santo. Durante os primeiros
anos da igreja, a evangelização dos gentios retardou-se visto que muitos
cristãos-judeus consideravam os gentios como "imundos", e não-santificados
por causa de sua não conformidade com as leis alimentares e outros regulamentos
mosaicos. Exigia-se uma visão para convencer a Pedro que aquilo que o Senhor
purificara ele não devia tratar de comum ou impuro. Isso importava em dizer que
Deus fizera provisão para a santificação dos gentios para serem o seu povo. E
quando o Espírito de Deus desceu sobre os gentios, reunidos na casa de
Cornélio, já não havia mais dúvida a respeito. Eram santificados pelo Espírito
Santo, não importando se obedeciam ou não às ordenanças mosaicas (Rom. 15:16),
e Pedro reptou os judeus que estavam com ele a negarem o símbolo exterior
(batismo nas águas) de sua purificação espiritual. (Atos 10:47; 15:8.)
(c) A Palavra de Deus.
(Santificação externa e prática.) (João 17:17, Efés 5:26; João 15:3; Sal.
119:9; Tia. 1:23-25.) Os cristãos são descritos como sendo "gerados pela
Palavra de Deus"(l Ped. 1:23). A Palavra de Deus desperta os homens a
compreenderem a insensatez e impiedade de suas vidas. Quando dão importância à
Palavra arrependendo-se e crendo em Cristo, são purificados pela Palavra que
lhes fora falada. Esse é o início da purificação que deve continuar através da
vida do crente. No ato de sua consagração ao ministério, o sacerdote israelita
recebia um banho sacerdotal completo, banho que nunca se repetia; era uma obra
feita uma vez para sempre. Todos os dias porém, era obrigado a lavar as mãos e
os pés. Da mesma maneira, o regenerado foi lavado (Tito 3:5); mas precisa uma
separação diária das impurezas e imperfeições conforme lhe forem reveladas pela
Palavra de Deus, que serve como espelho para a alma. (Tg. 1:22-25.) Deve lavar
as mãos, isto é, seus atos devem ser retos; deve lavar os pés, isto é,
"guardar-se da imundície que tão facilmente se apega aos pés do peregrino,
que anda pelas estradas deste mundo".
4. Idéias errôneas sobre a
santificação.
Muitos cristãos descobrem o fato de que
seu maior impedimento em chegar à santidade é a "carne", a qual
frustra sua marcha para a perfeição. Como se conseguirá libertação da carne?
Três opiniões erradas têm sido expostas:
(a) "Erradicação" do
pecado inato é uma dessas idéias.
Assim escreve Lewis
Sperry Chafer: "se a erradicação da natureza pecaminosa se consumasse, não
haveria a morte física, pois esta é o resultado dessa natureza. (Rom. 5:12-21.)
Pais que houvessem experimentado essa "extirpação", necessariamente
gerariam filhos sem a natureza pecaminosa. Mas, mesmo que fosse realidade essa
"extirpação", ainda haveria o conflito com o mundo, a carne (à parte
da natureza pecaminosa) e o diabo; pois a "extirpação" desses males é
obviamente antibíblica e não está incluída na própria teoria.
A erradicação é também contrária à
experiência.
(b) Legalismo, ou a observância de
regras e regulamentos.
Paulo ensina que a lei não pode
santificar (Rom. cap. 6), assim como também não pode justificar (Rom. 3). Essa
verdade é exposta e desenvolvida na carta aos Gálatas. Paulo não está de
nenhuma maneira depreciando a lei. Ele a está defendendo contra conceitos
errôneos quanto a seu propósito. Se um homem for salvo do pecado, terá que ser
por um poder à parte de si mesmo. Vamos empregar a ilustração dum termômetro. O
tubo e o mercúrio representam o indivíduo. O registro dos graus representará a
lei. Imaginem o termômetro dizendo: "Hoje não estou funcionando
exatamente; devo chegar no máximo a 30 graus." Será que o termômetro
poderia elevar-se à temperatura exigida? Não, deveria depender duma
condição/ora dele mesmo. Da mesma maneira o homem que percebe não estar à
altura do ideal divino não pode elevar-se em um esforço por alcançá-lo. Sobre
ele deve operar uma força à parte dele mesmo; essa força é o poder do Espírito
Santo.
(c) Ascetismo.
É a tentativa de subjugar a carne e alcançar a santidade por meio de privações
e sofrimentos — o método que seguem os católicos romanos e os hindus ascéticos.
Esse método parece estar baseado na
antiga crença pagã de que toda matéria, incluindo o corpo, é má. O corpo, por
conseguinte, é uma trava ao espírito, e quanto mais for castigado e subjugado,
mais depressa se libertará o espírito. Isso é contrário às Escrituras, que
ensinam que Deus criou tudo muito bom. É a alma e não o corpo que peca;
portanto, são os impulsos pecaminosos que devem ser subjugados, e não a carne
material. Ascetismo é uma tentativa de matar o "eu", mas o
"eu" não pode vencer o "eu". Essa é a obra do Espírito.
5. O verdadeiro método da
santificação.
O método bíblico de tratar com a carne,
deve basear-se obviamente, na provisão objetiva para a salvação, o sangue de
Cristo; e na provisão subjetiva, o Espírito Santo. A libertação do poder da
carne, portanto, deve vir por meio da fé na expiação e por entregar-se à ação
do Espírito. O primeiro é tratado no sexto capítulo de Romanos, e o segundo na
primeira parte do capítulo oitavo.
(a) Fé na expiação.
Imaginemos que houvesse judeus presentes (o que sucedia com freqüência)
enquanto Paulo expunha a doutrina da purificação pela fé. Nós os imaginamos
dizendo em protesto: "Isso é uma heresia do tipo mais perigoso!" Dizer
ao povo que precisam crer unicamente em Jesus, e que nada podem fazer quanto à
sua salvação porque ela é pela graça de Deus, tudo isso resultará em que
descuidarão de sua maneira de viver. Eles julgarão que pouco importa o que
façam, uma vez que creiam. Sua doutrina de fé fomenta o pecado. Se a
justificação é pela graça e nada mais, sem obras, por que então romper com o
pecado? Por que não continuar no pecado para que abunde ainda mais a graça? Os
inimigos de Paulo efetivamente o acusaram de pregar tal doutrina. (Rom. 3:8;
6:1.) Com indignação Paulo repudiou tal perversão. "De modo nenhum. Nós,
que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?" (Rom. 6:2).
A continuação no pecado é impossível a um homem verdadeiramente justificado, em
razão de sua união com Cristo na morte e na vida. (Vide Mat. 6:24.) Em virtude
de sua fé em Cristo, o homem salvo passou por uma experiência que inclui um
rompimento tão completo com o pecado, que se descreve como morte para o pecado,
e uma transformação tão radical que se descreve como ressurreição. Essa
experiência é figurada no batismo nas águas. A imersão do convertido testifica
do fato que em razão de sua união com o Cristo crucificado ele morreu para o
pecado; ser levantado da água testifica que seu contacto com o Cristo
ressuscitado significa que "como Cristo ressuscitou dos mortos, pela
glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida" (Rom. 6:4).
Cristo morreu pelo pecado a fim de que nós morrêssemos para o pecado.
"Aquele que está morto está justificado
do pecado" (Rom. 6:7). A morte cancela todas as obrigações e rompe todos
os laços. Por meio da união com Cristo, o cristão morreu para a vida antiga, e
os grilhões do pecado foram quebrados. Como a morte dava fim à servidão do
escravo, assim a morte do crente, que morreu para o mundo, o libertou da
servidão ao pecado. Continuando a ilustração: A lei nenhuma jurisdição tem
sobre um homem morto. Não importa qual seja o crime que haja cometido, uma vez
morto, já está fora do poder da justiça humana. Da mesma maneira, a lei de
Moisés, muitas vezes violada pelo convertido, não o pode "prender",
pois, em virtude de sua experiência com Cristo, ele está "morto".
(Rom. 7:1-4; 2 Cor. 5:14.)
"Sabendo que, havendo Cristo
ressuscitado dos mortos, já não morre; a morte não mais terá domínio sobre ele.
Pois, quanto a ter morrido, de uma vez morreu para o pecado, mas, quanto a
viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos como mortos para o
pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor" (Rom. 6:9-11). A
morte de Cristo pôs fim a esse estado terrenal no qual ele teve contacto como o
pecado; sua vida agora é uma constante comunhão com Deus. Os cristãos, ainda
que estejam no mundo, podem participar de sua experiência, porque estão unidos
a ele. Como podem participar? "Considerai-vos como mortos para o pecado,
nas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor." Que significa isso?
Deus já disse que por meio da nossa fé em Cristo, estamos mortos para o pecado
e vivos para a justiça. Resta uma coisa a fazer; crer em Deus e considerar ou
concluir que estamos mortos para o pecado. Deus declarou que quando Cristo
morreu, nós morremos para o pecado; quando ele ressuscitou, nós ressuscitamos
para viver uma nova vida. Devemos continuar considerando esses fatos como
absolutamente certos; e, ao considerá-los assim, tornar-se-ão poderosos em
nossa vida, pois, seremos o que reconhecemos que somos. Uma distinção
importante tem sido assinalada, a saber, a distinção entre as promessas e os
fatos da Bíblia. Jesus disse: "Se vós estiverdes em mim, e as minhas
palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e vos será
feito" (João 15:7). Essa é uma promessa, porque está no futuro; é algo
para ser feito. Mas quando Paulo disse que "Cristo morreu por nossos
pecados, segundo as Escrituras", ele está declarando um fato, algo que foi
feito. Vide a expressão de Pedro: "Pelas suas feridas fostes sarados"
(1 Ped. 2:24). E quando Paulo declara "que o nosso homem velho foi com ele
crucificado", ele está declarando um fato, algo que aconteceu. A questão
agora é: estamos dispostos ou não a crer
no que Deus declara que são fatos acerca
de nós? Porque a fé é a mão que aceita o que Deus gratuitamente oferece.
Será que o ato de descobrir a relação
com Cristo não constitui a experiência que alguns têm descrito como "a
segunda obra da graça"?
(b) Cooperação com o Espírito.
Os capítulos 7 e 8 de Romanos continuam o assunto da santificação; tratam da
libertação do crente do poder do pecado, e do crescimento em santidade. No cap.
6 vimos que a vitória sobre o poder do pecado foi obtida pela/é. O capítulo 8
apresenta outro aliado na batalha contra o pecado — o Espírito Santo.
Como fundo para o capítulo 8 estuda-se a
linha de pensamento no cap. 7, o qual descreve um homem voltando-se para a lei
a fim de alcançar santificação. Paulo demonstra aqui a impotência da lei para
salvar e santificar, não porque a lei não seja boa, mas por causa da inclinação
pecaminosa da natureza humana, conhecida como a "carne". Ele indica
que a lei revela o fato (v. 7), a ocasião (v.8), o poder (v.9), a falsidade (v.
11), o efeito (vs. 10,11), e a vileza do pecado (vs. 12,13).
Paulo, que parece estar descrevendo sua
própria experiência passada, diz-nos que a própria lei, que ele tão
ardentemente desejava observar, suscitava impulsos pecaminosos dentro dele. O
resultado foi "guerra civil" na sua alma. Ele é impedido de fazer o
bem que deseja fazer, e impelido a fazer o que odeia. "Acho então esta lei
em mim; que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o
homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra
lei que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do
pecado que está nos meus membros" (vs. 21-23).
A última parte do capítulo 7, evidentemente,
apresenta o quadro do homem debaixo da lei, que descobriu a perscrutadora
espiritualidade da lei, mas em cada intento de observá-la se vê impedido pelo
pecado que habita nele. Por que descreve Paulo esse conflito? Para demonstrar
que a lei é tão impotente para santificar como o é para justificar.
"Miserável homem que eu sou! quem
me livrará do corpo desta morte?" (v. 24 Vide 6:6). E Paulo, que descrevia
a experiência debaixo da lei, assim testifica alegremente de sua experiência
debaixo da graça: "Dou graças a Deus (que a vitória vem) por Jesus Cristo
nosso Senhor" (v. 25). Com essa exclamação de triunfo entramos no
maravilhoso capítulo oitavo, que tem por tema dominante a libertação da
natureza pecaminosa pelo poder do Espírito Santo.
Há três mortes das quais o crente deve
participar: 1) A morte no pecado, isto é, nossa condenação. (Efés. 2:1; Col.
2:13.) O pecado havia conduzido a alma a essa condição, cujo castigo é a morte
espiritual ou separação de Deus. 2) A morte pelo pecado, isto é, nossa justificação.
Cristo sofreu sobre a cruz a sentença duma lei infligida, e nós, por
conseguinte, somos considerados como a havendo sofrido nele. O que ele fez por
nós é considerado como se fosse feito por nós mesmos. (2 Cor. 5:14; Gál. 2:20.)
Somos considerados legal ou judicialmente livres da pena duma lei violada, uma
vez que pela fé pessoal consentimos na transação. 3) A morte para o pecado,
isto é, nossa santificação. (Rom. 6:11.) O que é certo para nós deve ser feito
real em nós; o que é judicial deve se tornar prático; a morte para a pena do
pecado deve ser seguida pela morte para o poder do pecado. E essa é a obra do
Espírito Santo. (Rom. 8:13.) Assim como a seiva que ascende na árvore elimina
as folhas mortas que ficaram presas aos ramos, apesar da neve e das
tempestades, assim o Espírito Santo, que habita em nós, elimina as imperfeições
e os hábitos da vida antiga.
6. Santificação completa.
Muitas vezes esta verdade é discutida
sob o tema: "Perfeição cristã."
(a) Significado de perfeição.
Há dois tipos de perfeição: absoluta e relativa. É absolutamente perfeito
aquilo que não pode ser melhorado; isso pertence unicamente a Deus. E
relativamente perfeito aquilo que cumpre o fim para o qual foi designado; essa
perfeição é possível ao homem.
A palavra "perfeição", no
Antigo Testamento, significa ser "sincero e reto" (Gên 6:9; Jó 1:1).
Ao evitar os pecados das nações circunvizinhas, Israel podia ser uma nação
"perfeita" (Deut. 18:13). No Antigo Testamento a essência da perfeição
é o desejo e a determinação de fazer a vontade de Deus. Apesar dos pecados que
mancharam sua carreira, Davi pode ser chamado um homem perfeito e "um
homem segundo o coração de Deus", porque o motivo supremo de sua vida era
fazer a vontade de Deus.
No Novo Testamento a palavra "perfeito"
e seus derivados têm uma variedade de aplicações, e, portanto, deve ser
interpretada segundo o sentido em que os termos são usados. Várias palavras
gregas são usadas para expressar a ideia de perfeição: 1) Uma dessas palavras
significa ser completo no sentido de ser apto ou capaz para certa tarefa ou
fim. (2 Tim. 3:17.) 2) Outra denota certo fim alcançado por meio do crescimento
mental e moral. (Mat. 5:48; 19:21; Col. 1:28; 4:12 ; Heb. 11:40.) 3) A palavra
usada em 2 Cor. 13:9; Efés 4:12; e Heb. 13:21 significa um equipamento cabal.
4) A palavra usada em 2 Cor. 7:1 significa terminar, ou trazer a uma
terminação. A palavra usada em Apoc. 3:2 significa fazer repleto, cumprir,
encher (como uma rede), nivelar (um buraco).
A palavra "perfeito" descreve
os seguintes aspectos da vida cristã: 1) Perfeição de posição em Cristo (Heb.
10:14) — o resultado da obra de Cristo por nós. 2) Madureza e entendimento
espiritual, em contraste com a infância espiritual. (1 Cor. 2:6; 14:20;2Cor.
13:11; Fil. 3:15;2Tim. 3:17) 3) Perfeição progressiva. (Gál. 3:3.) 4) Perfeição
em certos particulares: a vontade de Deus, o amor ao homem, e serviço. (Col.
4:12; Mat. 5:48; Heb. 13:21.) 5) A perfeição final do indivíduo no céu. (Col.
1:28,22; Fil. 3:12; 1Ped. 5:10.) 6) A perfeição final da igreja, ou o corpo de
Cristo, isto é, o conjunto de crentes. (Efés. 4:13; João 17:23.)
(b) Possibilidades de perfeição.
O Novo Testamento apresenta dois aspectos gerais da perfeição: 1) A perfeição
como um dom da graça, o qual é a perfeita posição ou estado concedido ao
arrependido em resposta à sua fé em Cristo. Ele é considerado perfeito porque
tem um Salvador perfeito e uma justiça perfeita. 2) A perfeição como realmente
efetuada no caráter do crente. É possível acentuar em demasia o primeiro aspecto
e descuidar do Cristianismo prático. Tal aconteceu a certo indivíduo que,
depois de ouvir uma palestra sobre a Vida Vitoriosa, disse ao pregador:
"Tudo isso tenho em Cristo." "Mas o senhor tem isso consigo,
agora, aqui em Glasgow?" foi a serena interrogação. Por outra parte,
acentuando demais o segundo aspecto, alguns praticamente têm negado qualquer
perfeição à parte do que eles encontram em sua própria experiência.
João Wesley (o fundador do Metodismo)
parece haver tomado uma posição intermediária entre os dois extremos. Ele
reconhecia que a pessoa era santificada na conversão, mas afirmava a
necessidade da inteira santificação como outra obra da graça. O que fazia essa
experiência parecer necessária era o poder do pecado, que era a causa de o cristão
ser derrotado. Essa bênção vem a quem buscar com fidelidade; o amor puro enche
o coração e governa toda a obra e ação, resultando na destruição do poder do
pecado.
Essa perfeição no amor não é considerada
como perfeição absoluta, nem tampouco isenta o crente de vigilância e cuidados
constantes. Wesley escreveu: "Creio que a pessoa cheia do amor de Deus
ainda está propensa a transgressões involuntárias. Tais transgressões vocês
poderão chamá-las de pecados, se quiserem; mais eu não." Quanto ao tempo
da inteira santificação, Wesley escreveu:
"É esta morte para o pecado e
renovação no amor, gradual ou instantânea? Um homem poderá estar à morte por
algum tempo; no entanto, propriamente falando, não morre enquanto não chegar o
instante em que a alma se separa do corpo; e nesse momento ele vive a vida da
eternidade. Da mesma maneira a pessoa poderá estar morrendo para o pecado por
algum tempo; entretanto, não está morto para o pecado enquanto o pecado não for
separado de sua alma; é nesse momento que vive a plena vida de amor. E da mesma
maneira que a mudança sofrida quando o corpo morre é duma qualidade diferente e
infinitamente maior que qualquer outra que tenhamos conhecido antes, tão
diferente que até então era impossível conceber, assim a mudança efetuada quando
a alma morre para o pecado é duma classe diferente e infinitamente maior que
qualquer outra experimentada antes, e que ninguém pode conceber até que a
experimente. No entanto, essa pessoa continuará a crescer na graça, no
conhecimento de Cristo, no amor e na imagem de Deus; e assim continuará, não
somente até a morte, mas por toda a eternidade. Como esperaremos essa mudança?
Não em um descuidado indiferentismo, ou indolente inatividade; mas em
obediência vigorosa e universal, no cumprimento fiel dos mandamentos, em
vigilância e trabalho, em negarmo-nos a nós mesmos, tomando diariamente a nossa
cruz; como também em oração fervorosa e jejum, e atendendo bem às ordenanças de
Deus. E se alguém pensa em obtê-la de alguma outra maneira (e conservá-la
quando a haja obtido, mesmo quando a haja recebido na maior medida) esse alguém
engana sua própria alma."
João Calvino, que acentuara a perfeição
do crente pela consumada obra de Cristo, e que não era menos zeloso da
santidade de que Wesley, dá o seguinte relato da perfeição cristã:
"Quando Deus nos reconcilia consigo
mesmo, por meio da justiça de Cristo, e nos considera como justos por meio da
livre remissão de nossos pecados, ele também habita em nós, pelo seu Espírito,
e santifica-nos pelo seu poder, mortificando as concupiscências da nossa carne
e formando o nosso coração em obediência à sua Palavra. Desse modo, nosso
desejo principal vem a ser obedecer à sua vontade e promover a sua glória.
Porém, ainda depois disso, permanece em nós bastante imperfeição para repelir o
orgulho e constranger-nos à humildade." ( Ecl. 7:20; 1Reis 8:46.)
Ambas as opiniões, a perfeição como dom
em Cristo e a perfeição como obra real efetuada em nós, são ensinadas nas
Escrituras; o que Cristo fez por nós deve ser efetuado em nós. O Novo
Testamento sustenta um ideal elevado de santidade e afirma a possibilidade de
libertação do poder do pecado. Portanto, é dever do cristão esforçar-se para
conseguir essa perfeição. (Fil. 3:12; Heb.6:l.)
Em relação a isto devemos reconhecer que
o progresso na santificação muitas vezes implica uma crise na experiência,
quase tão definida como a da conversão. Por um meio ou outro, o crente recebe
uma revelação da santidade de Deus e da possibilidade de andar mais perto dele,
e essa experiência é seguida por um conhecimento interior de ter ainda alguma
contaminação. (Vide Isa. 6.) Ele chegou a uma encruzilhada na sua experiência
cristã, na qual deverá decidir se há de retroceder ou seguir avante, com Deus.
Confessando seus fracassos passados, ele faz uma reconsagração, e, como
resultado, recebe um novo aumento de paz, gozo e vitória, e também o testemunho
de que Deus aceitou sua consagração. Alguns têm chamado a essa experiência uma
segunda obra da graça.
Ainda haverá tentação de fora e de
dentro, e daí a necessidade de vigilância (Gál. 6:1; ICor. 10:12); a carne é
fraca e o cristão está livre para ceder, pois está em estado de prova (Gál.
5:17; Rom. 7:18, Fil. 3:8); seu conhecimento é parcial e falho; portanto, pode
estar sujeito a pecados de ignorância. Porém ele pode seguir avante, certo de
que pode resistir e vencer toda a tentação que reconheça (Tia. 4:7; 1 Cor.
10:13; Rom. 6:14; Efés. 6:13,14); pode estar sempre glorificando a Deus cheio
dos frutos de justiça (1 Cor. 10:31; Col. 1:10); pode possuir a graça e o poder
do Espírito e andar em plena comunhão com Deus (Gál. 5:22, 23; Efés. 5:18; Col.
1:10,11; 1 João 1:7); pode ter a purificação constante do sangue de Cristo e
assim estar sem culpa perante Deus. (1 João 1:7; Fil. 2:15; 1Tess. 5:23).
V.
A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO
Temos estudado as preparações para a
salvação e considerado a natureza desta. Nesta seção consideramos: É a Salvação
final dos cristãos incondicional, ou poderá perder-se por causa do pecado?
A experiência prova a possibilidade duma
queda temporária da graça, conhecida por "desviar-se". O termo não se
encontra no Novo Testamento, senão no Antigo Testamento. Uma palavra hebraica
significa "voltar atrás" ou "virar-se"; outra palavra
significa "volver-se" ou ser "rebelde". Israel é comparado
a um bezerro teimoso que volta para trás e se recusa a ser conduzido, e
torna-se insubmisso ao jugo. Israel afastou-se de Jeová e obstinadamente se
recusou a tomar sobre si o jugo de seus mandamentos.
O Novo Testamento nos admoesta contra
tal atitude, porém usa outros termos. O desviado é a pessoa que outrora tinha o
zelo de Deus, mas agora se tomou fria (Mat. 24:12); outrora obedecia à Palavra,
mas o mundanismo e o pecado impediram seu crescimento e frutificação (Mat.
13:22); outrora pôs a mão ao arado, mas olhou para trás (Luc. 9:62); como a
esposa de Ló, que havia sido resgatada da cidade da destruição, mas seu coração
voltou para ali (Luc. 17:32); outrora estava em contacto vital com Cristo, mas
agora está fora de contacto, e está seco, estéril e inútil espiritualmente
(João 15:6); outrora obedecia à voz da consciência, mas agora jogou para longe
de si essa bússola que o guiava, e, como resultado, sua embarcação de fé
destroçou-se nas rochas do pecado e do mundanismo (1 Tim. 1:19); outrora
alegrava-se em chamar-se cristão, mas agora se envergonha de confessar a seu
Senhor (2 Tim. 1:8 ;2:12); outrora estava liberto da contaminação do mundo, mas
agora voltou como a "porca lavada ao espoja-douro de lama" (2 Ped.
2:22; vide Luc. 11:21-26).
É possível decair da graça; mas a
questão é saber se a pessoa que era salva e teve esse lapso, pode finalmente
perder-se. Aqueles que seguem o sistema de doutrina calvinista respondem
negativamente; aqueles que seguem o sistema arminiano (chamado assim em razão
de Armínio, teólogo holandês, que trouxe a questão a debate) respondem
afirmativamente.
1. Calvinismo.
A doutrina de João Calvino não foi
criada por ele; foi ensinada por santo Agostinho, o grande teólogo do quarto
século. Nem tampouco foi criada por Agostinho, que afirmava estar interpretando
a doutrina de Paulo sobre a livre graça.
A doutrina de Calvino é como segue: A
salvação é inteiramente de Deus; o homem absolutamente nada tem a ver com sua
salvação. Se ele, o homem, se arrepender, crer e for a Cristo, é inteiramente
por causa do poder atrativo do Espírito de Deus. Isso se deve ao fato de que a
vontade do homem se corrompeu tanto desde a queda, que, sem a ajuda de Deus,
não pode nem se arrepender, nem crer, nem escolher corretamente. Esse foi o
ponto de partida de Calvino — a completa servidão da vontade do homem ao mal. A
salvação, por conseguinte, não pode ser outra coisa senão a execução dum
decreto divino que fixa sua extensão e suas condições.
Naturalmente surge esta pergunta: Se a
salvação é inteiramente obra de Deus, e o homem não tem nada a ver com ela, e
está desamparado, amenos que o Espírito de Deus opere nele, então, por que Deus
não salva a todos os homens, posto que todos estão perdidos e desamparados? A
resposta de Calvino era: Deus predestinou alguns para serem salvos e outros
para serem perdidos. "A predestinação é o eterno decreto de Deus, pelo
qual ele decidiu o que será de cada um e de todos os indivíduos. Pois nem todos
são criados na mesma condição; mas a vida eterna está preordenada para alguns,
e a condenação eterna para outros." Ao agir dessa maneira Deus não é
injusto, pois ele não é obrigado a salvar a ninguém; a responsabilidade do
homem permanece, pois a queda de Adão foi sua própria falta, e o homem sempre é
responsável por seus pecados.
Posto que Deus predestinou certos
indivíduos para a salvação, Cristo morreu unicamente pelos "eleitos";
a expiação fracassaria se alguns pelos quais Cristo morreu se perdessem.
Dessa doutrina da predestinação segue-se
o ensino de "uma vez salvo sempre salvo"; porque se Deus predestinou
um homem para a salvação, e unicamente pode ser salvo e guardado pela graça de
Deus, que é irresistível, então, nunca pode perder-se.
Os defensores da doutrina da
"segurança eterna" apresentam as seguintes referências para sustentar
sua posição: João 10:28,29: Rom. 11:29; Fil. 1:6; 1 Ped. 1:5; Rom. 8:35; João
17:6.
2. Arminianismo.
O ensino arminiano é como segue: A
vontade de Deus é que todos os homens sejam salvos, porque Cristo morreu por
todos. (1 Tim. 2:4-6; Heb. 2:9; 2 Cor. 5:14; Tito 2:11,12.) Com essa finalidade
ele oferece sua graça a todos. Embora a salvação seja obra de Deus,
absolutamente livre e independente de nossas boas obras ou méritos, o homem tem
certas condições a cumprir. Ele pode escolher aceitar a graça de Deus, ou pode
resistir-lhe e rejeitá-la. Seu direito de livre arbítrio sempre permanece.
As Escrituras certamente ensinam uma
predestinação, mas não que Deus predestina alguns para a vida eterna e outros
para o sofrimento eterno. Ele predestina " a todos os que querem" a
serem salvos — e esse plano é bastante amplo para incluir a todos que realmente
desejam ser salvos. Essa verdade tem sido explicada da seguinte maneira: na
parte de fora da porta da salvação lemos as palavras: "quem quiser pode
vir"; quando entramos por essa porta e somos salvos, lemos as palavras no
outro lado da porta: "eleitos segundo a presciência de Deus". Deus,
em razão de seu conhecimento, previu que essas pessoas aceitariam o evangelho e
permaneceriam salvos, e predestinou para essas pessoas uma herança celestial.
Ele previu o destino delas, mas não o fixou.
A doutrina da predestinação é
mencionada, não com propósito especulativo, e, sim, com propósito prático.
Quando Deus chamou Jeremias ao ministério, ele sabia que o profeta teria uma
tarefa muito difícil e poderia ser tentado a deixá-la. Para encorajá-lo, o
Senhor assegurou ao profeta que o havia conhecido e o havia chamado antes de
nascer (Jer. 1:5). Com efeito, o Senhor disse: "Já sei o que está adiante
de ti, mas também sei que posso te dar graça suficiente para enfrentares todas
as provas futuras e conduzir-te à vitória." Quando o Novo Testamento
descreve os cristãos como objetos da presciência de Deus, seu propósito é
dar-nos certeza do fato de que Deus previu todas as dificuldades que surgirão à
nossa frente, e que ele pode nos guardar e nos guardará de cair.
3. Uma comparação.
A salvação é condicional ou
incondicional? Uma vez salva, a pessoa é salva eternamente? A resposta
dependerá da maneira em que podemos responder às seguintes perguntas-chave: De
quem depende a salvação? É irresistível a graça?
1) De quem depende, em última análise, a
salvação: de Deus ou do homem? Certamente deve depender de Deus, porque, quem
poderia ser salvo se a salvação dependesse da força da própria pessoa? Podemos
estar seguros disto: Deus nos conduzirá à vitória, não importa quão débeis ou
desatinados sejamos, uma vez que sinceramente desejamos fazer a sua vontade.
Sua graça está sempre presente para nos admoestar, reprimir, animar e sustentar.
Contudo, não haverá um sentido em que a
salvação dependa do homem? As Escrituras ensinam constantemente que o homem tem
o poder de escolher livremente entre a vida e a morte, e Deus nunca violará
esse poder.
2) Pode-se resistir à graça de Deus? Um
dos princípios fundamentais do Calvinismo é que a graça de Deus e irresistível.
Quando Deus decreta a salvação de uma pessoa, seu Espírito atrai, e essa
atração não pode ser resistida. Portanto, um verdadeiro filho de Deus
certamente perseverará até ao fim e será salvo; ainda que caia em pecado, Deus
o castigará e pelejará com ele. Ilustrando a teoria calvinista diríamos: é como
se alguém estivesse a bordo dum navio, e levasse um tombo; contudo está a bordo
ainda; não caiu ao mar.
Mas o Novo Testamento ensina, sim, que é
possível resistir à graça divina e resistir para a perdição eterna (João 6:40;
Heb. 6:46; 10:26-30; 2 Ped. 2:21; Heb. 2:3; 2 Ped. 1:10), e que a perseverança
é condicional dependendo de manter-se em contacto com Deus.
Note-se especialmente Heb. 6:4-6 e
10:26-29. Essas palavras foram dirigidas a cristãos; as epístolas de Paulo não
foram dirigidas aos não-regenerados. Aqueles aos quais foram dirigidas são
descritos como havendo sido uma vez iluminados, havendo provado o dom
celestial, participantes do Espírito Santo, havendo provado a boa Palavra de
Deus e as virtudes do século futuro. Essas palavras certamente descrevem
pessoas regeneradas.
Aqueles aos quais foram dirigidas essas
palavras eram critãos hebreus, que, desanimados e perseguidos (10:32-39),
estavam tentados a voltar ao Judaísmo. Antes de serem novamente recebidos na
sinagoga, requeria-se deles que, publicamente, fizessem as seguintes
declarações (10:29): que Jesus não era o Filho de Deus; que seu sangue havia
sido derramado justamente como o dum malfeitor comum; e que seus milagres foram
operados pelo poder do maligno. Tudo isso está implícito em Heb. 10:29. (Que
tal repúdio da fé podia haver sido exigido, é ilustrado pelo caso dum cristão
hebreu na Alemanha, que desejava voltar à sinagoga, mas foi recusado porque
desejava conservar algumas verdades do Novo Testamento.) Antes de sua conversão
havia pertencido à nação que crucificou a Cristo; voltar à sinagoga seria de
novo crucificar o Filho de Deus e expô-lo ao vitupério; seria o terrível pecado
da apostasia (Heb. 6:6); seria como o pecado imperdoável para o qual não há
remissão, porque a pessoa que está endurecida a ponto de cometê-lo não pode ser
"renovada para arrependimento"; seria digna dum castigo mais terrível
do que a morte (10:28); e significaria incorrer na vingança do Deus vivo
(10:30, 31).
Não se declara que alguém houvesse ido
até esse ponto; de fato , o autor está persuadido de "coisas
melhores" (6:9). Contudo, se o terrível pecado da apostasia da parte de
pessoas salvas não fosse ao menos remotamente possível, todas essas
admoestações careceriam de qualquer fundamento.
Leia-se 1 Cor. 10:1-12. Os coríntios se
haviam jactado de sua liberdade cristã e da possessão dos dons espirituais.
Entretanto, muitos estavam vivendo num nível muito pobre de espiritualidade.
Evidentemente eles estavam confiando em sua "posição" e privilégios
no Evangelho. Mas Paulo os adverte de que os privilégios podem perder-se pelo
pecado, e cita os exemplos dos israelitas. Estes foram libertados duma maneira
sobrenatural da terra do Egito, por intermédio de Moisés, e, como resultado, o
aceitaram como seu chefe durante a jornada para a Terra da Promissão. A
passagem pelo Mar Vermelho foi um sinal de sua dedicação à direção de Moisés.
Cobrindo-os estava a nuvem, o símbolo sobrenatural da presença de Deus que os
guiava. Depois de salvá-los do Egito, Deus os sustentou, dando-lhes, de maneira
sobrenatural, o que comer e beber. Tudo isso significava que os israelitas
estavam em graça, isto é: no favor e na comunhão com Deus.
Mas "uma vez em graça sempre em
graça" não foi verdade no caso dos israelitas, pois a rota de sua jornada
ficou assinalada com as sepulturas dos que foram destruídos em conseqüência de
suas murmurações, rebelião e idolatria. O pecado interrompeu sua comunhão com
Deus, e, como resultado, caíram da graça. Paulo declara que esses eventos foram
registrados na Bíblia para advertir os cristãos quanto à possibilidade de
perder os mais sublimes privilégios por meio do pecado deliberado.
4. Equilíbrio escriturístico.
As respectivas posições fundamentais,
tanto do Calvinismo como do Arminianismo, são ensinadas nas Escrituras. O
Calvinismo exalta a graça de Deus como a única fonte de salvação — e assim o
faz a Bíblia; o Arminianismo acentua a livre vontade e responsabilidade do
homem — e assim o faz a Bíblia. A solução prática consiste em evitar os
extremos antibíblicos de um e de outro ponto de vista, e em evitar colocar uma
idéia em aberto antagonismo com a outra. Quando duas doutrinas bíblicas são
colocadas em posição antagônica, uma contra a outra, o resultado é uma reação
que conduz ao erro. Por exemplo: a ênfase demasiada à soberania e à graça de
Deus na salvação pode conduzir a uma vida descuidada, porque se a pessoa é
ensinada a crer que conduta e atitude nada têm a ver com sua salvação, pode
tornar-se negligente. Por outro lado, ênfase demasiada sobre a livre vontade e
responsabilidade do homem, como reação contra o Calvinismo, pode trazer as
pessoas sob o jugo do legalismo e despojá-las de toda a confiança de sua
salvação. Os dois extremos que devem ser evitados são: a ilegalidade e o
legalismo.
Quando Carlos Finney ministrava em uma
comunidade onde a graça de Deus havia recebido excessiva ênfase, ele acentuava
muito a responsabilidade do homem. Quando dirigia trabalhos em localidades onde
a responsabilidade humana e as obras haviam sido fortemente defendidas, ele
acentuava a graça de Deus. Quando deixamos os mistérios da predestinação e nos
damos à obra prática de salvar as almas, não temos dificuldades com o assunto.
João Wesley era arminiano e George Whitefield calvinista. Entretanto, ambos
conduziram milhares de almas a Cristo.
Pregadores piedosos calvinistas, do tipo
de Carlos Spurgeon e Carlos Finney, têm pregado a perseverança dos santos de
tal modo a evitar a negligência. Eles tiveram muito cuidado de ensinar que o
verdadeiro filho de Deus certamente perseveraria até ao fim, mas acentuaram que
se não perseverassem, poriam em dúvida o fato do seu novo nascimento. Se a
pessoa não procurasse andar na santidade, dizia Calvino, bem faria em duvidar
de sua eleição.
É inevitável defrontarmo-nos com
mistérios quando nos propomos tratar as poderosas verdades da presciência de
Deus e a livre vontade do homem; mas se guardamos as exortações práticas das
Escrituras, e nos dedicamos a cumprir os deveres específicos que se nos
ordenam, não erraremos. "As coisas encobertas são para o Senhor Deus,
porém as reveladas são para nós" (Deut. 29:29).
Para concluir, podemos sugerir que não é
prudente insistir falando indevidamente dos perigos da vida cristã. Maior
ênfase deve ser dada aos meios de segurança — o poder de Cristo como Salvador;
a fidelidade do Espírito Santo que habita em nós, a certeza das divinas
promessas, e a eficácia infalível da oração. O Novo Testamento ensina uma
verdadeira "segurança eterna", assegurando-nos que, a despeito da
debilidade, das imperfeições, obstáculos ou dificuldades exteriores, o cristão
pode estar seguro e ser vencedor em Cristo. Ele pode dizer com o apóstolo
Paulo: "Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a angústia,
ou a perseguição ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada? Como está
escrito: Por amor de ti somos entregues à morte todo o dia; fomos reputados
como ovelhas para o matadouro. Mas em todas estas coisas somos mais do que
vencedores, por aquele que nos amou. Porque estou certo de que, nem a morte,
nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o
presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra
criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso
Senhor" (Rom. 8:35-39).
Fonte:
Conhecendo as Doutrinas da
Bíblia - Myer Pearlman - Editora Vida, 2006
Nenhum comentário:
Postar um comentário